Hannah e Martin
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DN2010.0304
MARIA JOSÉ NOGUEIRA PINTO
Esteve em cena no Teatro Aberto a peça Hannah e Martin, na qual a autora, Kate Fodor - alertando o espectador para o facto de se tratar de uma "visão ficcional" da história -, descreve a relação, intelectual e amorosa, entre o filósofo alemão Martin Heidegger e a pensadora Hannah Arendt. A peça merece ser vista não apenas pelo tema, mas também pela qualidade da representação e pelo extraordinário trabalho cénico realizado por João Lourenço. A liberdade ficcional tomada por Kate Fodor aliada à encenação de João Lourenço resultam numa obra que permite ao espectador ver a história por diferentes ângulos e, perante os factos e as personagens, tirar as suas próprias conclusões numa peça cujo tema central é o perdão.
Hannah Arendt e Martin Heidegger conhecem-se na Universidade de Marburg e da relação aluna-professor rapidamente surge uma relação amorosa que duraria quatro anos, durante os quais Hannah aprenderia a ver o mundo com Martin, a partir de Martin e, também, contra Martin. Muito mais do que o romance homem- -mulher, preservado dos olhos do mundo (e do espectador) pelas paredes de uma pequena cabana em Todtnauberg, refúgio intelectual de Heidegger, impressiona a profunda relação intelectual que se desenvolve entre os dois, e que tem como banda sonora, num sinal premonitório, Tristão e Isolda, de Wagner.
A relação - amorosa e intelectual - é interrompida pela força dos acontecimentos históricos, que revelam a incompatibilidade entre o filósofo alemão, que vê em Hitler o homem capaz de "preservar as características da vida alemã" e a pensadora judia que rapidamente se apercebe da impossibilidade de existir uma Alemanha que pertencesse a ambos. Heidegger é nomeado reitor da Universidade de Fribourg e profere o famoso discurso sobre a "Auto-afirmação da Universidade Alemã", onde assimila, de certa forma, o nacional- -socialismo na vida universitária, e Arendt deixa a Alemanha, recusando-se a circular no país como uma "cidadão de segunda" e integra uma organização que prepara a emigração de jovens judeus para a Palestina, abandonando o pensamento em nome de uma "responsabilidade ética da acção".
Quando, terminada a Guerra, Hannah e Martin se reencontram, seria tempo de ajustar contas. Na peça o reencontro dá-se em 1946, na casa de Heidegger. Nesse momento Hannah confronta o filósofo com a sua adesão ao nacional-socialismo, o seu silêncio no pós-Guerra e a sua recusa em retractar-se. Aqui, mais do que o reencontro de dois amantes, é revelado o reencontro entre dois grandes pensadores, numa espécie de catarse em que a tensão amorosa e intelectual tomam conta do espectador. O romantismo de Heidegger - o mesmo que tornara intenso o seu romance com Hannah - determinara a identificação do filósofo com o nacional-socialismo como "força que exaltava o espírito por detrás de cada poema e de cada nota de música" da "sua Alemanha". Arendt, que sabia bem que as ideias tinham consequências, entendia que esse espírito e os desígnios da "verdadeira vida alemã" não iriam arrancar os alemães da mediocridade - como Martin acreditara - mas transformá-los numa massa amorfa e facilmente manipulável. Neste ponto, o divórcio intelectual entre os dois torna-se inevitável.
Diz Arendt que "a única solução possível para o problema da irreversibilidade - a impossibilidade de se desfazer o que se fez embora não se soubesse, nem se pudesse saber, o que se fazia - é a faculdade de perdoar". O problema de Heidegger, cujo intelecto Arendt admiraria até ao fim da vida, fora o de entrar no mundo dos assuntos humanos, porque o filósofo - como ela diz - "não pode ser objectivo nem neutro no que se refere à política". Heidegger desiludira-a irreversivelmente, mas Hannah perdoa-o. Perdoa o Heidegger intelectual ao levar a cabo um esforço intenso no sentido de o reabilitar junto do meio universitário alemão, e divulgando os seus trabalhos nos Estados Unidos, e perdoa o Martin homem - o homem a quem, como confessaria no fim da vida, "permanecera fiel e infiel, sempre com amor".
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M. Teresa Carvalho