Redondos vocábulos (II)

Público, 2010.03.25 Helena Matos
A palavra mentira foi banida. Aliás, as pessoas deixaram de mentir. Quando muito, dizem inverdades

Icebergue - O caso BPN era a ponta do icebergue da corrupção no mundo da banca. No Apito Dourado, só conhecíamos a ponta do icebergue dos podres do futebol. O processo Casa Pia era a ponta do icebergue dos abusos sobre menores. A Noite Branca era a ponta do icebergue do mundo da vida nocturna. O advogado de Manuel Godinho entendeu por bem dizer que o seu cliente é "a face visível de um icebergue". Se inventariarmos todas as pontas de icebergue que têm vindo à tona nos últimos anos, e tendo em conta que a ponta do icebergue representa apenas dez por cento da massa real do icebergue, teremos de perceber que já não existe espaço para o país propriamente dito e nem sequer para nós, pois está tudo ocupado pelos icebergues. Paulatina, mas inexoravelmente, os icebergues ocuparam todo o país e nós fomos ficando com a alma gelada.

Igualdade - Esta palavra é a mais eficaz password do nosso mundo. Por exemplo, os portugueses vão pagar mais impostos, mas, segundo o Governo, não vão pagar mais impostos. Vão, sim, corrigir desigualdades.

As mais destravadas leis e decisões tornam-se inquestionáveis se alguém conseguir apresentá-las como visando combater as desigualdades. Desde o fim das ladies night - pois as borlas para as mulheres representam uma desigualdade para os homens - até à imposição de quotas nos lugares de chefias das empresas, tudo serve para justificar ingerências estatais, desde que em nome da igualdade. De tudo isto resulta invariavelmente mais desigualdade, facto imediatamente contornado exigindo-se mais legislação para impor a igualdade. Quando a realidade, de todo em todo, insiste em irromper, como acontece no caso dos rankings escolares, em que todos os anos se prova que a escola pública apresenta maus resultados face à privada (e note-se que no ensino público o custo médio de um aluno é idêntico às mensalidades pagas no privado), logo surge a acusação de que esses rankings produzem uma "rotulagem excludente" dos últimos classificados. E claro que ninguém quer ser excludente, porque a exclusão, nesta gíria, resulta de não se ter insistido o suficiente na promoção da igualdade. E, assim, cada vez mais pobres e mais desiguais, andamos num frenesi a promover a igualdade.

Inverdades - A palavra mentira foi banida. Aliás, as pessoas deixaram de mentir. Quando muito, dizem inverdades, conceito que está para a verdade como o cinzento-escuro está para o cinzento-claro: é tudo uma questão de tonalidade do mesmo cinzento. Logo, podemos falar mais verdade, menos verdade, inverdade. Mas são tudo variantes da verdade. A mentira e os mentirosos deixaram oficialmente de existir.

Números - A ideia de que os números representam algo de aferível está ultrapassadíssima. Os números tornaram-se sim na expressão de estados de alma e não num retrato que se procura o mais exacto possível. Por exemplo, a última greve da função pública teve uma adesão de oitenta por cento para os sindicatos e de 13 por cento para o Governo. Por outras palavras, não se sabe o que fizeram ou não fizeram nesse dia 67 por cento dos funcionários. Na verdade, podiam ser estas percentagens ou outras quaisquer, pois os números tornaram-se numa espécie de bibelots que compõem as frases. Ninguém os confirma e muito menos se averigua o que significam: ao certo, o que quer dizer o anúncio pelo Governo, em Fevereiro, de que até 2020 serão criados cem mil postos de trabalho na área das energias renováveis? Isto se nos ativermos ao mês de Fevereiro, porque, no início de Março, os 100 mil passaram a 120 mil e, entretanto, já vão em 130 mil. O que de mais parecido alguma vez existiu em Portugal com esta fantasia numérica são aqueles capítulos da Peregrinação sobre as guerras no Oriente: dos elefantes aos homens, passando pelas lanças e pelos jarrões, tudo se contava por milhares.

A prosseguirmos nesta estranha forma de vida e ainda mais estranha forma de contar, poremos rapidamente as agências de rating no index, pelas heresias que produzem sobre esta religião dos milhões que em Portugal substituiu a realidade.

Pedofilia - Nesta terminologia, a pedofilia é um crime hediondo quando praticado por sacerdotes católicos e o encobrimento dos autores destes actos por parte do Vaticano merece toda a condenação. Se os autores dos actos pedófilos forem políticos, e muito particularmente políticos que saibam esgrimir com perícia os redondos vocábulos, deixa de ser adequado usar o termo pedofilia. Estamos perante casos prescritos, coisas que não interessam ou, no limite, cabalas. Por fim, se for praticada por artistas, a pedofilia deixa de ser crime, tornando-se num detalhe sem relevância no percurso sempre notável do dito artista.

Problemático - Um bairro problemático não é, como se poderia pensar, um espaço cujas casas têm problemas nos alicerces ou nos telhados, mas sim um conjunto habitacional que, regra geral, saiu muito mais caro do que o previsto, foi inaugurado por detentores de cargos políticos que discursaram sobre o esforço necessário à concretização daquele projecto e cujos residentes tiveram acesso a essas casas em condições muito favoráveis.

Um bairro torna-se problemático quando, após a festa da inauguração, volta a ser notícia por ali se tolerarem situações que nos outros bairros e ruas deste país são consideradas crime. Assistentes sociais, ONG e muitos gabinetes municipais fazem o enquadramento nestes bairros e as soluções propostas passam sempre por pedir mais assistentes sociais, mais dinheiro para as ONG e mais gabinetes municipais agora dotados da novel figura do mediador cultural, para assim continuarem a fazer o acompanhamento dos bairros problemáticos, que, por sua vez, se desdobram em escolas problemáticas e famílias problemáticas. Política e profissionalmente, o problemático é um território de grandes oportunidades para gente com ambições.

Tecnológico - Ninguém conseguiu explicar o interesse pedagógico da distribuição dos Magalhães na escola primária ou, noutro campo etário, a utilidade de computadores nas mesa dos deputados no plenário da AR. A tecnologia pela tecnologia é como os óculos de sol que umas pessoas espetam na cabeça nos dias mais nebulosos: não se sabe para que servem, mas dão estilo.
Ensaísta

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