Quando é que se deixa de ser demasiado novo para ser Mozart?
José Manuel Fernandes
Público, 20090839
O tribunal não quer deixar Laura Dekker, de 13 anos, tentar uma viagem de circum--navegação num veleiro. O pai autoriza. Quem deve prevalecer?
Será que os adultos - sobretudo os adultos dos "serviços públicos" - convivem mal com adolescentes fora do comum? Ou será que esses adolescentes fora do comum são o produto de "pais tiranos" que apenas procuram a notoriedade a qualquer preço?
Em 1976, quando uma miúda de 14 anos ganhou o que havia para ganhar nos Jogos Olímpicos de Montreal, a capa da Time titulava: "Ela é perfeita. Mas os Jogos estão em perigo". "Ela" era Nadia Comaneci, a ginasta romena que não só arrebatou cinco medalhas nos campeonatos como, sobretudo, impressionou o mundo ao conseguir, pela primeira vez, várias notas máximas, 10,0, apenas destinadas à perfeição absoluta. Nunca ninguém repetirá o seu feito: o Comité Olímpico já não deixa participar atletas com menos de 16 anos.
Mas como comparar Comaneci com, por exemplo, Mozart? O génio austríaco já compunha aos cinco anos minuetos para cravo e aos doze anos já tinha composto três óperas? Ou como explicar as proezas militares de Joana d'Arc, que liderou o exército do Duque de Orleães em sucessivas batalhas vitoriosas contra os ingleses quando tinha apenas 17 anos? Ou que dizer de Filipe da Macedónia, que entregou a regência do reino ao seu filho Alexandre quando este tinha apenas 16 anos, o que não impediu aquele que hoje conhecemos por Alexandre, o Grande, de imediatamente se colocar à frente de exércitos e começar a acumular vitórias militares atrás de vitórias militares. E quantos saberão que Louis Braille completou o seu código para cegos com apenas 15 anos?
Podíamos multiplicar os exemplos, mas estes chegam para questionar a legitimidade das autoridades inglesas e holandesas que lidaram com Laura Dekker, a adolescente de 13 anos que se preparava para tentar dar a volta ao mundo, sozinha, no seu pequeno veleiro. Primeiro foram as autoridades inglesas que a localizaram no porto de Lowestoft, aonde chegara sozinha com o seu barco. Os assistentes sociais detiveram-na e obrigaram o seu pai a vir a buscá-la, apesar deste garantir que ela podia regressar pelos seus meios à Holanda. Depois foi o tribunal holandês de Utrecht que não esteve com meias-medidas e a colocou, por dois meses, sob a supervisão do conselho para a protecção das crianças, devendo entretanto ser submetida a uma análise psicológica. Só depois dessa análise o tribunal decidirá se esta adolescente que nasceu a bordo de um barco na Nova Zelândia e viveu os seus primeiros quatro anos no mar poderá, ou não, tentar a sua proeza de circum-navegar o planeta.
A preocupação das autoridades é que se esteja perante uma corrida irresponsável, estimulada pela famílias, para bater o recorde do mais jovem a empreender tal proeza. Até porque Mike Perham, de 17 anos, deve chegar hoje a Porstsmouth para terminar a sua primeira viagem de circum-navegação. Jessica Watson, de 16 anos, prepara-se para partir de Queensland, Austrália, para repetir a façanha, enquanto Abby Sunderland, de 15, planeia sair da Califórnia em Novembro para repetir a viagem que o seu irmão, Zac, hoje com 17 anos, terminou em Julho passado.
Laura Dekker seria apenas a mais nova a tentar dar a volta a mundo em solitário e, aparentemente, ninguém duvida que sabe velejar e já o fez muitas vezes sem ter o pai por perto, ele também um exímio velejador.
A questão que se coloca, face a esta aparente febre de recordes, é se estamos perante uma situação em que as famílias procuram a glória empurrando os filhos para aventuras perigosas e se, mesmo sendo isso verdade, os Estados e os tribunais têm o direito ou o dever de intervir. Os especialistas e os que já realizaram este tipo de viagens - e conhecem os desafios que elas colocam - não param de se interrogar sobre se alguém com a idade, a experiência e habilitações de Laura Dekker estará à altura de enfrentar os desafios físicos e mentais colocados por este tipo de viagens, onde a maturidade desempenha um enorme papel. Isto apesar de Mike Perham, que hoje se tornará no mais velejador a circum-navegar o globo, se ter estreado com apenas 14 anos numa viagem a solo de travessia do Atlântico.
Não havendo respostas exactas e científicas para as interrogações dos especialistas, não terão os tribunais e os serviços de assistência social casos mais importantes onde aplicar o seu tempo e os seus recursos? É que, pelo que foi noticiado, nada indica que Laura Dekker esteja a ser abusada pelo seu pai...
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