Arrogância da ignorância
João Cesar das Neves
DN 20090824
Uma crise mundial como a actual tem ao menos uma vantagem, a humilhação de peritos e especialistas. Infelizmente também torna mais arrogantes os ignorantes, com a tese curiosa de, como a ciência falhou, o disparate ser aceitável.
A realidade ultrapassa sempre a nossa capacidade de compreensão. A verdade é infinita. Apesar dos enormes sucessos das investigações nas últimas décadas, entidades como o cosmos, energia, clima, mente, corpo humano, economia e tantos outros permanecem mistérios insondáveis. Quanto mais aprendemos mais sabemos que desconhecemos. É verdade que, fascinados pelos indiscutíveis resultados, alguns estudiosos se iludem por momentos pensando controlar o que mal vislumbram. Fiascos como o actual trazem realismo e modéstia aos grandes espíritos. Mas os últimos meses mostram também que com a vergonha dos doutores vem a petulância dos burros, convencidos que o desastre dá relevância aos seus palpites. É verdade que a sabedoria tem limites, mas a asneira só tem defeitos.
Basta ler os jornais para ver bem esta bizarria. A incapacidade dos grandes especialistas em dominar os produtos financeiros sofisticados trouxe grande divertimento a comentadores que, no fundo, se orgulham apenas da própria ignorância. Nem sequer sabem muito bem quais são os tais métodos que com tanta honra desconhecem. Muitos jornalistas e políticos, que não conseguiram prever a crise nem fazem ideia como sair dela, ridicularizam cientistas e outros políticos pela mesma incapacidade. Não têm resposta, mas sentem-se importantes criticando o desconhecimento dos que sabem mais que eles.
Outra certeza que os analistas improvisados retiram da recessão é que ela mostra que os mercados não equilibram e as leis económicas não funcionam. Dizem isto com a maior segurança, sem notarem que se fosse verdade já teriam morrido de fome. Comem o pequeno-almoço, metem gasolina, vêem televisão, tudo na certeza de que mercado e leis económicas não estão a funcionar. Nem percebem que a própria existência do jornal e Internet onde as escrevem ou do café onde as apregoam é prova evidente do erro dessas mesmas opiniões. Como a erupção de um vulcão não contradiz, antes confirma, a lei da gravidade, também os fenómenos recentes só provam da eficácia dos mercados, até durante um terramoto.
O maior disparate, e o mais comum, é deduzir da crise a necessidade de mudar o sistema. Isso equivale a recomendar às vítimas de um desastre de automóvel que andem de burro. O progresso aumenta as nossas capacidades mas também a dimensão dos riscos. A única forma garantida de evitar colapsos como a actual recessão seria regressar à pastorícia medieval. Será esse o sistema que defendem?
É evidente que se pode e deve corrigir vícios de regulamentos, bloqueios de mecanismos, erros e crimes de responsáveis. Mas isso nada tem a ver com mudança do sistema, porque este é o único que funciona. Já se usaram muitos outros, todos piores. A única maneira que o ser humano encontrou para voar foi com engenhos que por vezes caem. Evitar o risco de queda só indo por terra. Também o desenvolvimento económico só foi conseguido até hoje de uma única forma, esta em que vivemos, a qual gera crises. O sistema perfeito é apenas outra tolice de ignorantes.
Crises violentas foram recorrentes ao longo dos séculos de capitalismo. Euforias, pânicos, derrocadas e alvoroços aconteceram em tantas épocas, culturas e circunstâncias que, por muito irracionais que pareçam a quem vê de fora, temos de admitir que fazem parte da natureza humana. Colapsos são naturais ao sistema económico. Como a doença, violência, ciúme, crime e estupidez, vamos sempre viver com eles. Aprendemos a minorar drasticamente os seus efeitos, como também se viu estes meses, mas nunca conseguiremos evitá-los por completo.
Perante a enorme e maravilhosa complexidade da realidade, todos devemos ter a humildade de a respeitar e admirar. É verdade que os esforços da ciência levam alguns a esquecer essa atitude. Mas nada gera mais arrogância que a ignorância.
João César das Neves
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