O encanto da construção
João César das Neves
DN, 20090831
Portugal está em obras. Por todo o lado vemos estaleiros, buracos, betoneiras e capacetes. O motivo é evidente: as eleições autárquicas serão daqui a poucos meses e a campanha tem de incluir inaugurações. Além de irritar os munícipes com ruído e incómodo, esta actividade traz vários problemas escondidos,
A principal razão da azáfama é o mau planeamento. A maioria dessas edificações não foi preparada ou concebida convenientemente e está horrivelmente atrasada. Os trabalhos fazem-se de afogueado, em condições incríveis e horários impossíveis. E custos acrescidos. Tudo isto é uma manifestação dos dois traços mais profundos da natureza nacional: todos sabem que os portugueses são horríveis planeadores e excelentes improvisadores. Ninguém imagina como, mas todas essas obras vão ficar prontas a tempo graças a feitos inauditos de desenrascanço e invenção.
Há ainda o método original português de construção. Quando se começa uma obra, delimita-se a zona, vêm as máquinas, revolvem a terra, abrem buracos e depois… nada. Durante semanas não há actividade. A seguir constrói-se e depois… outra vez nada. Fica tudo em tosco à espera dos acabamentos. Por isso se vêem tantas zonas limitadas por fitas ou blocos, com escavadoras paradas, montes de cascalho ou areia, sem ninguém a trabalhar. Estão nos períodos de pousio que só os portugueses impõem. Assim um trabalho que devia durar três dias demora duas semanas; tarefas de três meses ocupam ano e meio.
As razões destes insólitos intervalos são desconhecidas. Talvez os engenheiros queiram apanhar os terrenos desprevenidos. Ou os mestres- -de-obra gostem de deixar oxidar os cortes para facilitar terraplanagens. Ou ainda porque, depois de alguns esforços, seja preciso que a paisagem descanse, facilitando edificações mais serenas. Qualquer que seja o motivo, não há dúvida que não se vê ninguém a mexer numa grande percentagem das zonas supostamente em obras. Com métodos tão originais não admiram atrasos e esforços tardios de recuperação.
Outro aspecto importante destes projectos é que não estão pagos. Tudo aquilo vai aumentar a dívida. Aliás, se olhar com atenção, até é capaz de vislumbrar, por entre os pilares, o desequilíbrio orçamental, o défice externo, a origem da nossa crise estrutural.
O principal problema, porém, é que grande parte desse esforço é inútil. Antes da adesão à Europa, Portugal tinha grande falta de infra-estruturas físicas mas hoje, após melhorias espantosas nos últimos 20 anos, já são suficientes. Os nossos problemas estão nas infra-estruturas humanas. Os males da Saúde, Justiça e Educação vêm do funcionamento, não das instalações. Não é por condições operacionais, mas erros de operação que os ministérios falham.
A construção porém continua a grande velocidade. Temos uma rede de auto--estradas, escolas e centros de saúde mais apertada que a maior parte dos nossos parceiros. Existem pavilhões polidesportivos e parques industriais em todos os apeadeiros ferroviários. Pior ainda, com a população nacional em decadência, a próxima geração precisará de menos habitações, aulas, transportes. Mas continua a edificar-se.
Toda esta actividade não nasce da necessidade mas da oportunidade política. Desnecessárias à vida dos cidadãos, as construções são excelentes na argumentação eleitoral do autarca ou ministro. Não há sucesso na política sem o nome ligado a um punhado de locais, com a inevitável placa comemorativa. Nada que o responsável tenha feito, por essencial e inovador que fosse, terá valor ao lado da inauguração do prédio, estrada, jardim ou instalação. Por isso, quase só por isso, é que Portugal está em obras.
O fascínio com a pedra é imemorial na raça humana e o seu aproveitamento político vem pelo menos das pirâmides. Durante o salazarismo era muito criticado o proverbial "corta-fitas" mas a democracia, eliminando a tesoura, manteve a cerimónia. Os fundos da CEE deram ainda mais força a esta certeza. Como os faraós, quanto menos o político faz pelo povo, mais constrói para o povo ver.
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