Somos todos Centeno

JOÃO LUIS CESAR DAS NEVES    DN   04-04-2018

A situação económica portuguesa é esquizofrénica. Como no famoso romance de Robert Louis Stevenson de 1886, por vezes parece o próspero Dr. Jekyll, outras o sinistro Mr. Hyde. Isso não é novidade. Vivemos assim até 2008, quando a crise internacional nos obrigou a assumir a contradição. Agora os sinais de recaída amontoam-se a cada dia. Só é estranho que o país reincida na mesma doença tão distraído como há dez anos.

A economia cresce, o rating melhora, o governo triunfa. Entretanto, com a dívida em níveis insustentáveis e as taxas de poupança e investimento em mínimos históricos, a fragilidade financeira é ainda pior do que há dez anos. Com a actividade produtiva sequiosa de capital, o crédito bancário alimenta consumo e especulação, exactamente o que aconteceu em 2008: "Carlos Costa avisa banca para travar crédito à habitação" (DN, 7/Dez/2017); "Portugueses estão a pedir mais empréstimos para ir de férias" (DN, 31/ /Mar/2018). Será que já ninguém se lembra destes sintomas?

Enquanto a sociedade consome e especula, o governo de António Costa, como então o de José Sócrates, é intendente e pregoeiro da recaída na loucura. Quando, por exemplo, o ministro da Saúde concorda entusiasticamente com o ministro das Finanças ("em termos de rigor orçamental, somos todos Centeno", declarou Adalberto Campos Fernandes no Parlamento a 29 de Março), sabemos que há algo de muito errado, num ou noutro.

Se alguém precisava de provas da esquizofrenia, a entrevista do professor Mário Centeno ao Expresso de sábado passado tira quaisquer dúvidas: vivemos já na realidade alternativa. A causa directa dessa intervenção foi a zanga do ministro com a decisão do Eurostat de incluir no défice a despesa de recapitalização da Caixa Geral de Depósitos, que lhe estragou o brilharete do "défice mais baixo da democracia". A forma como comenta o episódio mostra que é mesmo só o símbolo que lhe interessa, ignorando a realidade da situação.

O governante não nega que o dinheiro foi gasto, e até garante que se fosse noutro banco deveria ser contado ("outros casos, como o BES e o Banif, foram feitos com base na ajuda de Estado"). Mas como a CGD é pública, chega mesmo a dizer que a fortuna que gastámos neste banco em dificuldades "não tem nenhuma relevância económico-financeira, é meramente contabilística". Ou seja, não faria nenhuma diferença para a nossa economia se a CGD não tivesse os enormes problemas que tem (aliás ignorados pelo ministro, dizendo-se "completamente satisfeito com a situação actual da CGD"), e o orçamento tivesse poupado os milhares de milhões de euros que gastou. É tudo meramente contabilístico. Pelo contrário, o valor de 0,91% do PIB em défice já não é meramente contabilístico, mas algo de grande relevância económico-financeira. Percebem a esquizofrenia?

Chega ao ponto de pretender provar que "a carga fiscal não aumentou em Portugal", como diz o título na primeira página. O raciocínio tem pérolas de retórica: "A carga fiscal é um conceito muito antigo que sobrevive por ser útil, mas está desfasado da realidade." Como pode algo ser útil e desfasado da realidade? E que aconteceu à realidade para esse conceito útil ficar tão desfasado? A realidade é que no consulado de Centeno toda a redução do défice foi feita com aumento de receita, porque a despesa até subiu.

É quase doloroso ver um economista competente tentar demonstrar que reduziu impostos, aumentou rendimentos e desceu o défice. As razões indicadas para a impossibilidade são três: "Em primeiro lugar, a economia teve um desenvolvimento muito acima do projectado (...) O peso dos juros no PIB ficou em 3,9%, o mais baixo desde 2010 (...) O terceiro grupo de razões tem que ver com alguns impactos que tínhamos previsto e que depois não se materializaram", citando aqui o adiamento para 2018 das despesas com os lesados do BES. Ora, como vimos, a primeira é frágil, a segunda temporária e a terceira, essa sim, meramente contabilística. Nada disto é estrutural.

O elemento que mais prova o desfasamento do ministro face à realidade é a resposta à pergunta se a redução do défice "implicou sacrifícios na saúde, nos serviços públicos": "Com certeza que não implicou." Mas noutras páginas do mesmo semanário informa-se que "Os médicos protestam de preto (...) pela agonia do SNS" (p. 40), "Equipamento da GNR está atrasado" (26) e "Meios aéreos borregam na Páscoa" (27). O segredo da consolidação de Centeno é degradação dos serviços públicos, que fica por denunciar enquanto os funcionários forem aumentados. O Estado serve crescentemente, não o país, mas quem lá trabalha. Nada disso incomoda o ministro, orgulhoso por os valores das cativações de 2017 serem inferiores à enormidade de 2016.

Entretanto, ele não se dá conta da ironia de, em 2008, Sócrates também se ter gabado de que o défice era o mais baixo da democracia. Mas a esquizofrenia de que sofre é apenas sinal da loucura em que está a sociedade. Somos todos Centeno.

Por decisão pessoal. o autor deste texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.

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