Um acaso
Público 2010-08-29 Vasco Pulido Valente
Parte da baixa classe média, pude aproveitar a educação dos liceus (primeiro do Camões, depois do Pedro Nunes), que não eram, como hoje se diz, "facilitadores". Bem ou mal, saí de lá com algumas noções de aritmética, lógica e gramática e, principalmente, com a ideia (muito proveitosa) de que tudo aquilo me preparava - num futuro longínquo - para trabalhar. A desilusão veio com a universidade, em que, fora meia-dúzia de professores, a ignorância, o vício, o fanatismo e até a loucura regiam o ensino estabelecido e consagrado. Mas, mesmo aqui, o regime não fez de mim um trapo. O movimento estudantil, a célebre "permissividade" de 1960 (de facto de 1967/68) e uma fuga in extremis para Inglaterra (com "cunhas" de um abençoado tio) acabaram por me salvar.
Quando voltei de Oxford, caiu também, oportunamente, a ditadura. A descoberta da democracia e do jornalismo vieram quando deviam vir. Até cheguei, um pouco por equívoco, ao Governo. Passei a meia-idade e o princípio da velhice sem graves dificuldades de dinheiro, num país que se julgava próspero. Só agora as coisas tremem e há uma autêntica ameaça de um desastre colectivo. O meu destino quase não dependeu de mim. Dependeu do estado do mundo e da história de Portugal. Um pequeno erro de datas teria feito de mim uma pessoa diferente. Melhor ou pior, mas com certeza diferente. Quando me apanho a exagerar a minha importância ou a minha vontade, este facto básico consegue sempre repor a noção da minha essencial contingência. Sou um produto de forças que nunca controlei. De certa maneira, um acaso. Como nós todos.
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