Um acaso

Público 2010-08-29 Vasco Pulido Valente

Nasci, como já disse em outro sítio, em 21 de Novembro de 1941, quando o exército nazi estava a menos de 70 quilómetros de Moscovo e o que parecia (erradamente) a civilização do "iluminismo" parecia estar no seu último momento. Hitler perdeu Moscovo e, embora ele nessa altura não percebesse, foi ali que perdeu a guerra. Tive muita sorte. Não nasci por volta de 1920 (como o meu pai) na Alemanha, em França, em Itália, na Roménia, na Hungria, na Bulgária ou em Espanha. Devo a minha vida à irrelevância estratégica de Portugal e ao catolicismo ultramontano do dr. Salazar, que obedecia ao Papa e, como lhe mandavam, não gostava do Reich. Quem sabe destas coisas, sabe que a violência da II Grande Guerra, apesar da propaganda, nunca penetrou a sério em Portugal.

Parte da baixa classe média, pude aproveitar a educação dos liceus (primeiro do Camões, depois do Pedro Nunes), que não eram, como hoje se diz, "facilitadores". Bem ou mal, saí de lá com algumas noções de aritmética, lógica e gramática e, principalmente, com a ideia (muito proveitosa) de que tudo aquilo me preparava - num futuro longínquo - para trabalhar. A desilusão veio com a universidade, em que, fora meia-dúzia de professores, a ignorância, o vício, o fanatismo e até a loucura regiam o ensino estabelecido e consagrado. Mas, mesmo aqui, o regime não fez de mim um trapo. O movimento estudantil, a célebre "permissividade" de 1960 (de facto de 1967/68) e uma fuga in extremis para Inglaterra (com "cunhas" de um abençoado tio) acabaram por me salvar.

Quando voltei de Oxford, caiu também, oportunamente, a ditadura. A descoberta da democracia e do jornalismo vieram quando deviam vir. Até cheguei, um pouco por equívoco, ao Governo. Passei a meia-idade e o princípio da velhice sem graves dificuldades de dinheiro, num país que se julgava próspero. Só agora as coisas tremem e há uma autêntica ameaça de um desastre colectivo. O meu destino quase não dependeu de mim. Dependeu do estado do mundo e da história de Portugal. Um pequeno erro de datas teria feito de mim uma pessoa diferente. Melhor ou pior, mas com certeza diferente. Quando me apanho a exagerar a minha importância ou a minha vontade, este facto básico consegue sempre repor a noção da minha essencial contingência. Sou um produto de forças que nunca controlei. De certa maneira, um acaso. Como nós todos.

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