Quando tudo arde

DN2010
ALBERTO GONÇALVES
No ano passado, o mérito pela escassez de incêndios cabia ao Governo e não a um Verão particularmente fresquinho. Este ano, a culpa pela devastação em curso é do calor tórrido, dos criminosos, dos negligentes e do "aquecimento global": não é do Governo. Aparentemente, a acção preventiva da tutela reflecte-se nos sucessos, não nos fracassos.
Mistérios à parte, a verdade é que o País voltou a arder e as cabeças encarregadas de o pensar também. Com a frequência das chamas, fervilham ideias instantâneas sobre o modo ideal de impedir a calamidade. Em países normais, esse é o tipo de coisas que se discute antes de a calamidade acontecer. Aqui discute-se durante a dita, embora não se trate do típico "casa roubada, trancas na porta", não senhor: em Portugal, debate-se o tipo de tranca enquanto a casa está a ser roubada. Depois de consumado o roubo, a porta continua aberta.
As trancas, perdão, as medidas de prevenção sugeridas são inúmeras. A minha preferida é a do ministro da Agricultura, que deseja nacionalizar os terrenos abandonados. No universo peculiar do dr. António Serrano, obviamente habilitadíssimo para a pasta que carrega, as matas e florestas do Estado encontram-se limpas, vigiadas e pura e simplesmente não ardem. Eis o contributo mais original desde que um ministro do PSD atribuiu a origem dos fogos às granadas que os ex-combatentes trouxeram do Ultramar.
Ainda que sem o talento natural do dr. António Serrano, que ponderadamente pediu a 6 deste mês uma avaliação do Plano Nacional de Defesa da Floresta aprovado em 2006, as luminárias restantes fazem o que podem em matéria de desnorte. O ministro da Administração Interna compara, todo contente, a quantidade de área queimada com a equivalente de 2003 e declara-se preocupado com "a segurança das pessoas", uma evidência se por "pessoas" entendermos ele próprio, e por "segurança" a sua manutenção no cargo. Um secretário de Estado do Ambiente ciranda a anunciar "meios aéreos". O Presidente da República e o primeiro-ministro interrompem com pompa as respectivas férias mas, desrespeitosamente, as labaredas não interrompem o respectivo trabalho. E a ministra da Educação prossegue o encerramento em massa das escolas rurais e deixa cada aldeia entregue a três (ou quatro) velhinhas, assunto que nada tem a ver com os incêndios e por cuja invocação peço desculpa.
Domingo, 8 de Agosto - Casamento escandaloso
O casamento recente de um escritor português com o companheiro motivou uma ou outra notícia de jornal, uma ou outra coluna de opinião e uma razoável quantidade de sentimentalismo na Internet. Dado que não se tratou do primeiro casamento entre pessoas do mesmo sexo, que sempre tinha o efeito da novidade, estranhei que tantos órgãos de comunicação e tantos comunicadores individuais imitassem a imprensa dos mexericos. Estranhei sobretudo que a comoção orientasse quase todos os desabafos.
Sobretudo porque, ao contrário do que sucede no jornalismo dito "social", os autores dos desabafos em questão são, ou parecem ser, esquerdistas convictos, daquela esquerda que, não só desde Brecht, gastou décadas a ridicularizar o matrimónio "burguês". Pelos vistos, bastou alterar a orientação sexual para que o que antes era ridículo se transformasse numa celebração do amor puro e irredutível. Num ápice, o formalismo opressor do "papel" passou a atestado indispensável de maioridade cívica e a motivo para lágrimas de alegria.
Que eu saiba, a igualdade não é isto. A igualdade que esteve no centro das reivindicações do casamento gay implicaria, agora que este se consumou em sentido lato, que se alargasse o enxovalho aos gays que cederam às "convenções" e à moralidade "tradicional".
A menos que a igualdade fosse apenas um pretexto para que o casamento, à semelhança das paradas, reforçasse o cliché da homossexualidade enquanto diversão exótica. A menos que se vá a um enlace gay como se vai ao zoo ver os macaquinhos amassarem bananas contra as grades, exercício tonto se praticado pelo cidadão comum mas ternurento quando a cargo dos bichinhos. A menos que o combate à discriminação seja um modo sinuoso, e talvez inconsciente, de discriminar mais.
Quarta-feira, 11 de Agosto - A OMS e o lobo
Há poucas semanas, a Organização Mundial de Saúde avisava oficialmente, pela enésima vez, que a gripe A não terminara. Oficiosamente, a guarda avançada da OMS fundamentava o parecer. Para o especialista britânico John Oxford, por exemplo, a "segunda vaga" da gripe vinha a caminho e com redobrado vigor. A vacinação, referiu o dr. Oxford, é essencial. Para o português Francisco George, o H1N1 iria "com certeza" regressar e "ser responsável por nova actividade epidémica". As pessoas, referiu o dr. George, devem continuar a vacinar-se. A despropósito, note-se que o dr. Oxford é o responsável científico de um importante laboratório de investigação de vacinas e que o dr. George é um dos rostos do sistema de saúde que gastou, perdão, investiu dezenas de milhões nas ditas, ainda assim uma pequenina parcela dos 5 mil milhões gastos, perdão, investidos globalmente.
Agora, pela voz da sua directora, a OMS admite que a gripe, afinal, acabou, com um saldo de vítimas algumas vezes inferior ao da gripe comum e muitas vezes inferior ao previsto. Ao decreto do fim, a dra. Margaret Chan acrescentou uma curiosa constatação: "O mundo teve sorte."
Não digo que não, mas sorte de facto teve a OMS, que andou um ano e tal a incitar ao pânico e, após se provar o absurdo do incitamento, mantém inexplicáveis pretensões à credibilidade. E quem diz a OMS diz a imprensa, os investigadores com e sem aspas, os governantes e restantes elementos da brigada do medo, que no mínimo há um par de décadas assustam a humanidade com epidemias e cataclismos que, contas feitas, dão em nada ou em quase nada. Das vacas malucas às aves engripadas, passando, fora do zoológico, pelo "bug" do milénio ou pelo aquecimento global, os tempos recentes têm sido uma sucessão de desgraças anunciadas e nunca verificadas.
Felizmente. Excepto pelo receio de que as massas, as exactas massas que têm entrado em histeria a cada alarme falso, um dia ignorem um alarme verdadeiro. Eis, parece-me, mais um pavor injustificado. A julgar pelas evidências, Pedro pode gritar "Lobo!" tanto quanto quiser que surgiremos sempre a acudir ao rebanho. Isto na presunção de que o rebanho são os outros.
Quinta-feira, 12 de Agosto - Vitória Amarga
Para quem, como eu, nasceu em Matosinhos e suportou Narciso Miranda na presidência da câmara durante três quartos da vida, o vexame a que o afastamento e, agora, a expulsão do PS sujeitaram a criatura deveria suscitar um imenso gozo. Estranhamente, não é só isso que suscita.
A título informativo, esclareço que não tenho respeito nenhum pelo sr. Narciso Miranda. No seu longo reinado (é o termo), Matosinhos alcançou de facto o progresso, isto é, progrediu da vila industrial, simpática e bonitinha da minha infância para o dormitório triste, caótico e esteticamente angustiante dos tempos que correm. A ética também não abundou nesta história: se o sr. Narciso Miranda era o "autarca modelo", não o era no sentido afirmado por Mário Soares e demais líderes socialistas, que vinham a Matosinhos receber os proverbiais (e medonhos) "banhos de multidão", mas no sentido em que representava na perfeição os vícios e os tiques do nosso municipalismo democrático. Durante anos, supus que não haveria pior. Estava, naturalmente, enganado.
No dia em que a lota deixou de dar votos e passou a dar vítimas de enfarte, as cúpulas partidárias sentenciaram a morte política do sr. Narciso Miranda, trocando-o pelo apoio a um punhado dos seus anteriores acólitos. Regeneração? Não brinquem. Hoje, os acólitos de ontem, aliás igualmente envolvidos na morte de Sousa Franco, dominam a autarquia, coadjuvados por novas e inacreditáveis insignificâncias. O que se julgava impossível aconteceu: os vícios e os tiques aumentaram. O poder local é um poço sem fundo.
O poder central também, e a manipulação sofisticada dos senhores que despacham sumariamente o sr. Narciso Miranda e 200 outros militantes provoca saudades do tempo em que o populismo se reduzia a um par de beijos numa vendedora de peixe.
Enxotado num processo sem regras nem maneiras, o sr. Narciso Miranda fingiu descobrir de repente que, embora a democracia não dispense os partidos, os partidos dispensam a democracia sempre que podem. Tem o castigo que merece, infelizmente executado por quem e em benefício de quem merecia castigo maior.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

OS JOVENS DE HOJE segundo Sócrates

Hino da Padroeira

O passeio de Santo António