O suicídio público do procurador-geral, take II

Público 2010.08.06 José Manuel Fernandes
A forma como Pinto Monteiro geriu os casos Face Oculta e Freeport destruiu a credibilidade do Ministério Público

O que poderei pensar da honestidade intelectual de alguém que escreve terem tido os investigadores do caso Freeport - referindo-se implicitamente aos procuradores que emitiram o despacho final - "seis anos" para ouvirem quem quisessem quando sabe que a investigação só passou para as suas mãos no final de 2008? Que quer cavalgar o logro mediático da investigação "eterna"?

Quando Pinto Monteiro tomou posse como procurador-geral da República, a sua chegada foi saudada pelos que tinham esperança que pudesse trazer com ele "melhor justiça, não protagonismos nem espectáculos mediáticos", como escrevi em Setembro de 2006. A desilusão não podia ser maior: depois de um Cunha Rodrigues que nos havia legado "uma PGR onde se sentia que existia uma direcção firme, onde a autonomia dos magistrados estava limitada pelos poderes da hierarquia" e de um Souto Moura que nos deixara "uma PGR ferida por casos mediáticos onde as falhas na investigação foram gritantes" (e estou a citar-me a mim próprio), Pinto Monteiro tornou-se num dos rostos do desastre da Justiça em Portugal. Pior: está a contribuir activamente para esse desastre.

O desnorte de Pinto Monteiro começou a tornar-se evidente pelo menos desde que pousou na sua secretária o processo Face Oculta. A 24 de Junho do ano passado. O dia a partir do qual a investigação deixou de ser secreta porque se produziu algures a mais grave de todas as violações ao segredo de justiça desse processo: os que estavam a ser investigados (nomeadamente Amando Vara) foram informados de que tinham os telemóveis sob escuta e trocaram de cartões e aparelhos. A partir desse momento, para qualquer magistrado do Ministério Público, tornou-se claro que levar informação delicada ao gabinete do procurador-geral pode implicar um risco para as investigações em curso. De resto, o teor do despacho do Freeport, em que os magistrados optam por heterodoxamente desabafar, deve ser visto à luz do mal-estar existente entre quem investiga e quem se espera que dirija a investigação.

Depois dessa reunião, não faltaram decisões erráticas, declarações contraditórias e despachos incompreensíveis de Pinto Monteiro. Da mesma forma que na citada entrevista por escrito ao Diário de Notícias utiliza argumentos falaciosos, num dos despachos em que não deu seguimento à pretensão dos magistrados de Aveiro de abrirem uma investigação ao caso PT-TVI, o procurador-geral usou escutas posteriores à reunião de 24 de Junho, citando conversas altamente inverosímeis e destinadas a despistar os investigadores. E, como se isso não chegasse, fez acabar o processo com uma decisão contraditória com anteriores declarações de intenção: a destruição dos seus próprios despachos, realizada de forma tão intempestiva como a queima de documentos comprometedores numa lareira antes da chegada das autoridades.

A forma como o procurador-geral se comportou no processo Freeport não foi nem mais brilhante, nem mais transparente, nem mais coerente, do que a forma como interveio no Face Oculta. De facto, como pode um procurador-geral que, muito antes de o processo estar concluído, deu a entender que o primeiro-ministro não seria acusado, escrever agora que os procuradores tiveram sempre total autonomia? Antever o desenvolvimento do processo é dar total autonomia? E será que o procurador-geral já se esqueceu da quantidade de vezes que negou a existência de pressões por parte do procurador Gomes da Mota, pressões cuja existência acabaria por ser confirmada e levar à suspensão daquele magistrado?

Mais: como pode o procurador-geral demarcar-se, em tom indignado, do teor do despacho do Freeport quando teve conhecimento do seu teor com antecedência, como registou Cândida Almeida, por escrito, no próprio despacho? Como pode dizer que os investigadores ouviram quem entenderam quando Cândida Almeida, que é sua superior hierárquica, considerou que das respostas de Sócrates "não resultariam alterações de fundo aos juízos indiciários"? Como consegue afirmar que podiam pedir a prorrogação do prazo quando, antes, o seu vice-procurador-geral indeferira um pedido de aceleração processual ao mesmo tempo que estipulava a data imperativa para o encerramento do processo?

É também muito perturbador que o procurador-geral tivesse criado uma situação de duvidosa legalidade ao manter em funções o seu vice, Mário Gomes Dias, que já atingiu a idade da reforma e se mantém ao serviço. Tanto ou mais perturbador quanto é verdade que, para o manter em funções, pediu ao Governo para fazer uma lei especial tão rocambolesca que, mesmo com o apoio do CDS, não conseguiu ser aprovada a tempo na sessão legislativa que terminou. Não compreenderá o procurador-geral que, ao fazer esse pedido, se coloca na situação de ficar a dever um favor ao Governo, o que nunca é recomendável para quem deseja manter intocável o seu estatuto de independência?

Tudo isto já seria suficientemente extraordinário para duvidar da capacidade e autoridade de alguém que, como eu próprio escrevi em Março, cometera suicídio em público durante o caso Face Oculta. Mas o procurador-geral ainda conseguiu algo mais surpreendente ao considerar que só tem "os poderes da rainha de Inglaterra". De facto, como pode alguém exercer um lugar sem poderes durante quase quatro anos e não ter já batido com a porta? A única explicação é os seus poderes serem bem mais substanciais do que os da velha senhora do Palácio de Buckingham. E são: de acordo com a lei, compete o procurador-geral "dirigir, coordenar e fiscalizar a actividade do Ministério Público e emitir as directivas, ordens e instruções a que deve obedecer a actuação dos respectivos magistrados". Não parece pouca coisa.

Vivemos tempos trágicos, de colapso de um dos pilares do Estado democrático. Quem semeou ventos, colheu tempestades, mas o que incomoda mais é, no Ministério Público, ter-se a sensação de que, depois de um PGR directivo e poderoso, de outro PGR menos poderoso mas que protegia os magistrados que dirigia, temos um PGR que não dirige nem protege a sua equipa. Bem pelo contrário. Jornalista (www/twitter.com/jmf1957)

P.S.: Tenho as maiores dúvidas sobre a existência (desde 1975) de um sindicato no Ministério Público. Mas tenha a absoluta certeza de que não deveria haver qualquer associação sindical de um órgão de soberania, como são os juízes. Por isso estranhei a fúria de um antigo dirigente da Associação Sindical de Juízes (o nosso procurador-geral) contra o alegado poder do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público. Não me pareceu coerente.

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