O Homo freeportus

Público, 2010-08-05 Helena Matos
O Homo freeportus nasceu da união entre dois aparelhos reprodutores: o do Estado e o dos partidos
Há 24.500 anos na zona que hoje é Portugal o Homo neanderthalensis ter-se-á cruzado com o Homo sapiens e desse cruzamento terá nascido uma criança conhecida como Menino do Lapedo. Este facto está longe de ser pacífico entre os especialistas da área, que discutiram apaixonadamente a viabilidade dos amplexos dos sapiens com os neanderthalensis. Ou vice-versa, que para o caso deve ir dar ao mesmo. Mas nunca fiando.

Como me parece que, à excepção destes tempos contemporâneos, em que o sexo passou a disciplina escolar, a humanidade sempre se cruzou sem quaisquer problemas e muitas vezes sem qualquer critério na escolha do parceiro, nada me espanta que os sapiens se tenham cruzado com os neanderthalensis. (Para lá desta polémica, intuo que temos outras à espera, pois os fiscais da igualdade e do género ainda nos vão obrigar a esquecer o machista do Homo sapiens e passar tudo a pessoas, já que o ridículo impede aplicar àquela gente a ladainha das lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgéneros.)

Creio, contudo, que o Menino do Lapedo não é o único caso em que diferentes humanóides se cruzaram entre si neste nosso território. E se no caso de Menino do Lapedo alguns arqueólogos apresentam dúvidas fundamentadas sobre a hipótese de o neanderthalensis se ter cruzado com o sapiens, já quanto a um outro cruzamento de humanóides que aqui teve lugar não só temos abundante documentação escrita sob a forma de autos, inquéritos e notícias, como desse cruzamento resultou um ramo particularmente bem sucedido da nossa espécie. Falo do Homo freeportus.

O Homo freeportus nasceu da união entre dois aparelhos reprodutores: o do Estado e o dos partidos. Os nascidos desse cruzamento vivem do Estado e naturalmente sentem o Estado como o seu território. Conhecem-lhe os procedimentos, os regulamentos, as excepções aos mesmos e os anexos às disposições gerais. Aliás, grande parte do poder dos freeportus é exercido através da produção contínua de regulamentos, leis e decretos que trazem os demais hominídeos em constante sobressalto.

Os freeportus usam o Estado em seu proveito até ao limite e conhecem trilhos e atalhos onde caem os demais, particularmente os que não fazem parte da tribo dos freeportus, que por eles não são protegidos, ou, pior ainda, quando deixam de o reconhecer como seu aliado. Para os apreciadores da caça é um exercício fascinante ver como os freeportus se coordenam para atacar uma pessoa, um poder ou uma estrutura que a dado momento passam a identificar como um obstáculo. Raramente falham o alvo.

Não há memória de um freeportus ter sido alguma vez punido, até porque após uma situação de risco imediatamente os freeportus detectam o que os levou quase a serem apanhados e logo corrigem a legislação e mudam quem tem de ser mudado.

Os freeportus nunca deixam verdadeiramente o Estado, pois, mesmo quando partem para regiões inóspitas, como o sector privado, tal só acontece porque levam consigo o seu conhecimento do ecossistema estatal que os torna valiosos aos olhos de quem os convida.

Convém esclarecer que não basta usar o Estado como coisa sua para se ser freeportus. E é aqui que entra a outra parte do aparelho reprodutivo que gera os freeportus: os aparelhos partidários. Factos ocorridos nos últimos anos permitem dizer com relativa segurança que um partido conseguiu realizar este cruzamento com o Estado com grande sucesso. Todos tentaram o cruzamento com o aparelho estatal, mas só um foi capaz de produzir um homem verdadeiramente distinto dos de mais. E que se orgulha disso. Pois tal como no caso dos pretéritos cruzamentos entre os neanderthalensis e os sapiens que até ao aparecimento do Menino do Lapedo eram uma coisa envergonhada, logo desmentida e negada, também até ao aparecimento do Homo freeportus se negava que existisse cruzamento ente o Estado e os partidos. É claro que aqui e ali havia uns seres cujo estilo de vida tudo indicava que tivessem nascido de tal união, mas ou as criaturas conseguiam negar tal possibilidade ou acabavam um tempo votadas a um distanciamento higiénico pelos da sua tribo.

Com o Homo freeportus tudo isso é passado. O Homo freeportus é o que é e tem orgulho disso. A grande irmandade dos freeportus tem como princípio base que não interessa o que faz um freeportus. Interessa que é freeportus e o homem freeportus é melhor que os outros só por ser freeportus. O Homo freeportus vive em comunidades, tem forte sentido gregário e protege sempre e até ao limite o chefe da tribo. Tudo o que o chefe diz está bem.

Alguns estudiosos dizem que os freeportus ao sentirem-se verdadeiramente ameaçados optam por destruir tudo à sua volta, procurando, no meio do caos, garantir rotas de fuga ao chefe. Outros garantem que existem casos de tribos de freeportus que se sacrificaram para salvar o seu chefe.

Menos dúvidas gera a capacidade de Portugal sobreviver aos homens que o desgovernam: há precisamente 432 anos, Portugal vivia o primeiro dos seus dias como país não independente. Na véspera, a 4 de Agosto de 1578, acontecera Alcácer Quibir.

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