Aqui ou na vida real?

DN20100804 CARLOS ABREU AMORIM

1. Um amigo que ainda fez o serviço militar obrigatório contou-me um episódio curioso: os recrutas estavam na parada a serem ritualmente insultados por um sargento. O bruto inquiria-os acerca das suas qualificações e profissões para, logo de seguida, os vilipendiar acerca disso. A dado passo, berrou a um magala com ar assustadiço: "O que é que tu fazes?" O rapaz balbuciou um elucidativo pedido de esclarecimento: "Aqui ou na vida real?"…
2. A duplicação tautológica das expressões que o modismo impinge gosta de discorrer sobre a divergência entre os "ritmos da justiça" e aqueles a que todos nós estamos sujeitos. Evidentemente, isso não passa de um disparate forjado por quem pretende desculpar o que não devia. A obscena lentidão da justiça não pode ser justificada com eventuais discordâncias naturais entre o seu exercício e a cadência em que o nosso tempo se move.
Sejamos claros: a justiça é vagarosa porque funciona mal. Porque está pessimamente organizada. Porque os seus operadores se equivocaram acerca dos seus fins - o sistema de justiça está confeccionado para comprazer os diversos grupos de interesse que nela vivificam e não para satisfazer as aspirações do todo social. A justiça é monstruosamente burocratizada, rege-se por leis mal traduzidas do alemão, elaboradas para uma realidade e, sobretudo, pressupondo um ambiente policial e judicial a muitas léguas daquele que por aqui subsiste. A generalidade dos professores de Direito considera que qualquer remota ligação à realidade é susceptível de desconsiderar a pretensa torre de marfim em que se enclausuraram, e as hierarquias das várias coutadas do poder judicial aninham-se no regaço das altas instâncias políticas com uma voluptuosidade indisfarçável.
3. Desde que o caso Freeport renasceu por impulso inglês, em 2008, as personagens que ilustram a disfuncionalidade que o sistema vem apregoando, Pinto Monteiro e Cândida Almeida, anunciaram aos sete ventos que José Sócrates estava inocente - a única surpresa apenas aconteceria se os resultados da investigação desmentissem esse axioma antecipado.
Agora, os socráticos do costume (mal) acompanhados por eternos enamorados pelo politicamente correcto decretaram que o despacho dos procuradores do inquérito está ferido de "deslealdade". Esquecem-se de que esses procuradores são magistrados e não meros paus- -mandados, amestrados para serem mudos espectadores da ruína do seu trabalho e compelidos a uma cumplicidade em nome de coisas menores - não o foram com Lopes da Mota e não o quiseram ser agora. Ainda bem.
4. Hernando de Soto provou que existe uma relação directa entre a eficiência da Administração e o desenvolvi- mento dos países. Julgo que é possível fazer um paralelismo semelhante quanto ao sistema judicial. Mas não há hipótese de cura quando o doente paralisou num estado de negação. O maior problema da justiça reside no facto de a maior parte dos juristas não reconhecerem que o cidadão comum, tal como o magala da história, faz uma distinção assertiva entre os tristes enredos desta justiça e aquilo que efectivamente sucede na vida real…

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