Precariedade persistente
DN20100809 JOÃO CÉSAR DAS NEVES
Precários nos querem, rebeldes nos terão." Esta frase, que há meses aparece nas nossas paredes, surpreende. Não se costumam ler por cá afirmações tão ameaçadoras. Noutros países, coisas destas são habituais, mas nós somos um povo pacato, sereno, que raramente se entrega a emoções agressivas. Nas tabernas e blogs dizem-se coisas até mais graves, mas desde os turbulentos tempos da revolução não surgem na praça pública.
Antes de mais, a frase manifesta a gravidade do problema laboral. Não só o desemprego chegou ao máximo da história nacional, envolvendo quase 600 mil pessoas, mas, além dos 71 mil inactivos disponíveis que, desanimados na busca de emprego, não contam nas estatísticas, ainda há quase 900 mil trabalhadores sem contrato permanente. O total representa milhão e meio, 28% da população activa, que pretende emprego estável sem conseguir.
O fenómeno da precariedade tem passado em Portugal por fases diferentes. Nos anos 1980 e 90 sofreu uma flutuação marcada, evoluindo em simetria aos desempregados. Enquanto o desemprego subia, a precaridade descia e vice-versa. Era evidente que constituía a válvula de escape do sistema. Eram os precários que ganhavam ou perdiam emprego quando este subia ou descia.
Isso manifesta aquele que é o contributo mais forte, e mais oculto, da integração europeia para a nossa força laboral: a dualidade. A legislação comunitária, pensada para países ricos, só parcialmente pode ser aplicada por cá. Nasceu então uma elite de trabalhadores com direitos europeus, ficando o resto à margem. É essa margem precária que dá flexibilidade e permite ao mercado funcionar com desemprego muito inferior ao comunitário. Assim se finge adoptar o sistema dos parceiros, mantendo o equilíbrio à custa da injustiça.
Como é costume na hipocrisia nacional, todos sabem mas ninguém diz. Os trabalhadores desprotegidos, indispensáveis à viabilidade económica, são usados como argumento retórico mas ficam sempre à margem das políticas sociais. Entretanto, os sindicatos vão reivindicando mais direitos para os associados, esquecendo de facto quem não atinge os mínimos. Esses, incapazes de pagar quotas e sempre ameaçados de despedimento, passam ao lado dos interesses dos que os dizem representar.
Na última década, a evolução mudou, mesmo se o quadro de fundo se manteve. A partir de 2001, com o desemprego a subir, o peso dos trabalhadores a prazo, em vez de descer, aumentou todos os anos excepto nas crises de 2002-03 e 2008. Há dez anos que se situa em máximos históricos, acima de 20% do emprego por conta de outrem. Isto mostra as profundas mudanças no mercado de trabalho, não apenas por transformação estrutural, mas pela entrada de 250 mil emigrantes na década, que elevou o total de estrangeiros em Portugal a 450 mil.
Se a referida frase revela este terrível problema, falha redondamente no diagnóstico e na terapia. Inspirada no antigo mito da luta de classes e na ilusão ingénua e cómoda de um grupo de "maus" que "quer" a precariedade, anuncia rebeldia que, não só não resolveria nada, mas agravaria tudo.
É urgente uma reforma séria, profunda e realista do mercado de trabalho. Como os 900 mil precários sabem bem, garantir direitos no papel bloqueia o crescimento, única forma de criar empregos sólidos. A ilusória rigidez legal impede o ajustamento, sobretudo em época de turbulência, e prejudica todos. Pelo contrário, como se vê lá fora, uma flexibilização justa e moderada das regras, preservando os direitos essenciais, assegurando forte vigilância social e acudindo aos mais afectados, permite a justiça laboral e fomenta empregos de qualidade.
Mas, apesar de anos de fiasco evidente, os obstáculos à reforma permanecem formidáveis. Contra o realismo estão as retóricas dos autoproclamados defensores dos trabalhadores, a ilusão das seguranças aparentes e, sobretudo, os interesses dos privilegiados. É mais cómodo acusar o vácuo e prometer rebeldia. Mas a alternativa é a continuação deste marasmo social. Se rígidos se quiserem, precários continuarão.
naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt
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