Sobre a Igreja Nova de Almada
Pe Joaquim Pedro Quintela, Outubro de 2018
Um amigo reencaminhou-me um mail convidando-me a assinar a petição que corre a solicitar ao Senhor
Bispo de Setúbal que impeça a renovação do espaço litúrgico na chamada “igreja nova” de Almada (INA).
Não o fiz. De facto, não o poderia fazer por razões várias. Dentre estas destaco não poder embarcar na
apaixonada defesa de uma igreja que conheço razoavelmente (fui ‘coadjutor’ da Paróquia de Almada
cerca de 3 anos).
Antes demais, parece-me que a carta que acompanha a justificação desta petição não ajuda. A
classificação da igreja de Teotónio Pereira como uma “obra icónica da cidade” não é feliz. E lembro a
propósito um artigo recente de Miguel Esteves Cardoso: “As palavras mítico, lendário e icónico foram
tão abusadas durante tanto tempo que precisam de ser deixadas em paz durante umas décadas.
Em vez
delas usem-se palavras mais claras como famoso, conhecido, popular, tradicional, original, consensual,
reconhecido, antigo, vanguardista, elogiado, representativo e típico” (Público, 13.9.18).
Bom, por aí adiante seguem-se argumentos que me parecem pouco satisfatórios: depois de zurzir na má
arquitectura que se produzia em Portugal nos anos 60 valoriza-se a “igreja nova” porque “a publicação
espanhola ARA [recorrente esta necessidade apoucada de citar estrangeiros para garantir as qualidades
nacionais...] - Arte Religioso Actual (...) revelou grande entusiasmo relativamente a este projeto, tendo-o
incluído em 1970 na lista das 10 obras mais significativas de arquitetura religiosa produzida em
Portugal” na década anterior. De facto, não se pode reconhecer como um “campeonato” de mérito, esse
das 10 igrejas que se fizeram neste país, numa época tão pouco recomendável quanto ao seu mérito
artístico-religioso. Acresce que, desarticuladamente, a certa altura ao Bispo de Setúbal é pedido que
defenda o “património histórico-cultural da nossa cidade”.
Todavia, parece-me árduo falar da
INA como se tratasse de um manifesto arquitectónico pró-Concílio.
Se não vejamos: não descubro fundamentação nos textos do Concílio para a ausência de Pórtico ou
Portal. Na grande tradição dos templos do culto cristão que grande relevo têm estes no dialogo com o
mundo! Esconsa e enviesada a porta que dá acesso habitual ao “edifício”, que poderia ser um qualquer
outro equipamento da cidade de natureza não religiosa e de significado neutro, sem o transito evidente
para o espaço sagrado. Aliás, que infeliz o acesso à igreja obrigatoriamente com lanços de escada longos.
Apenas uma porta lateral, de acesso restrito, está ao nível do solo. Convenhamos que não é a solução
ideal para o acesso da 3ª idade à igreja. Pior, cria-se assim um obstáculo ao acolhimento, tão relevante na
espiritualidade que se refez no Concílio.
Assim mesmo, considero também muito infeliz a solução de iluminação da igreja. Num pais como o
nosso, assolarado quase todo o ano, é necessário acender as lâmpadas elétricas durante o dia para que a
igreja tenha luz. A solução de substituição de lâmpadas não existe e, portanto, a única alternativa é
caríssima, e isto num edifício que se pretende pobre. Não me parece que, os que o são, se possam dar a
esse luxo de ter que chamar um empreiteiro de cada vez que é necessário mudar uma lâmpada que se
fundiu!
Mas eis-me chegado ao espaço celebrativo. Sim, penso que é de muito mau gosto o empedrado de rua em
torno do altar e do sacrário, como que a sugerir que são “rua” os lugares por excelência da celebração do
sagrado cristão (bem sei que não é de bom tom, por entre as modas teológicas, falar de “sagrado”, mas
acontece que é este o vocabulário do documento conciliar sobre a liturgia!). Acresce que o altar actual é
mais parecido com uma bancada de serralheiro, talvez a evocar a antiga Lisnave, do que com um altar
para a celebração eucarística. Do mesmo modo parece-me que o ambão celebra mais o ferro do que a
agilidade da Palavra. E a propósito de um edifício que se pretende “acabado” lembro as soluções de
recurso que nunca resolveram o impasse de uma igreja que não tem uma presidência (lugar destinado ao
sacerdote que preside à celebração). De novo, nada no Concílio sugere que a presidência da Missa deve
ser dissolvida junto dos acólitos, leitores e/ou coro.
Curiosa, ainda, nos últimos anos, a tentativa de vestir o desconforto das paredes de cinzenta cor com
madeiras envernizadas e peças de cerâmica. Estas, de pouco relevo e significado, vivem apenas da
assinatura de um grande e querido artista (Cargaleiro) embora seja manifesto que não foi ali que melhor
se manifestou o seu génio.
Obviamente, seria irrefletido ver nestas notas uma ultramontana recusa da arquitectura moderna. E como
que a justificar que me sinto muito bem em espaços religiosos contemporâneos seguem alguns exemplos:
antes demais, como obra de grande mérito, também de Teotónio Pereira com Nuno Portas e, segundo me
parece, artística e liturgicamente, mais feliz do que a INA é a igreja do Sagrado Coração de Jesus. As
colunas muito bem lançadas, a escala grande mas não massificada, a iluminação natural que passa de um
lado ao outro da igreja, o tratamento da capela do Santíssimo e o baptistério (embora, também, com
alguns erros que se me afiguram grosseiros do ponto de vista litúrgico). De facto, uma é Monumento
Nacional, a outra não.
De igual modo, e quedando-me apenas nas igrejas construídas entre nós, penso na Igreja do Marco de
Canaveses, muito mais expressiva e essencial do que a INA. Lá está o tal portal como acesso ao mistério,
o mesmo celebrado com toda a sacralidade e paz no poço de luz sobre o baptistério (abstenho-me de fazer
considerações sobre o que no meu entendimento destoa nesta igreja).
Mais recentemente, no que parece
ser uma felicíssima integração no território circundante, com respeito pela linguagem arquétipa católica
(portanto, rápida e simplesmente reconhecível pela comunidade), mas numa expressão formal e
tecnicamente inteiramente contemporânea, a Igreja de N. Srª de Fátima de Idanha-a-Nova, no parque
escutista da autoria dos arquitectos Helena Vieira e Pedro Ferreira. (1)
Enfim, a terminar, sublinho que são patentes algumas confusões na raiz desta discussão: uma a de se
considerar implicitamente que o dever básico de uma igreja “monumental” é ser um museu que conserva
peças. Outra, a de confundir como absoluto o resultado arquitectónico do trabalho de Teotónio Pereira
cuja assinatura, porém — não o esqueçamos — tem elevado significado político. Por último, resta saber
se o que agora se propõe tem mérito artístico e litúrgico. Mas a discussão parece por demais apaixonada
para se conseguir tal razoabilidade de argumentos. Na verdade, e mais modestamente do que esta petição
disléxica, penso que seria melhor olhar para o muito que já se conseguiu com a construção da INA como
algo a caminho. Algo, portanto, cuja vocação está nas antípodas do que parece pretender-se com a sua
putativa musealização!
(1) De passagem, faço notar que não me quero referir às construções recentes no Santuário de Fátima e, menos ainda, às “Capelas de Braga”...
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