Uma estratégia

PEDRO MEXIA     EXPRESSO   29.12.2018 

Em “Hillbilly Elegy” (2016), J. D. Vance, sobre quem escrevi nesta página, mostrou-nos a América profunda, uma América feia, porca e má, que conhecemos mal, ou caricaturalmente, e que elegeu um Presidente. Não tão marcante, mas também significativo, é “The Benedict Option” (2017), de Rod Dreher, que tem como subtítulo, “uma estratégia para os cristãos numa América pós-cristã”. Jornalista conservador, Dreher considera no entanto que o conservadorismo político americano fracassou, na medida em que cooptou valores pouco ou nada cristãos como o individualismo, o secularismo, o relativismo, o consumismo, o hedonismo.
Dreher é um cristão ortodoxo; não apenas por ser membro da Igreja Ortodoxa, mas porque acredita que não há verdadeiro cristianismo sem ortodoxia, quer dizer, sem adesão integral e intransigente a um dogma. Ao cristianismo dominante chama “deísmo terapêutico moralista”: Deus é a origem do mundo mas não intervém no mundo, embora nos ajude com os objectivos essenciais, a bondade e a procura da felicidade. E pergunta Dreher: para que serve esse cristianismo aguado, emotivista, um cristianismo que não se distingue do “zeitgeist”?
Em termos históricos, os alvos de Dreher são, como dizer?, todos os grandes movimentos intelectuais desde a Idade Média. Ele acha que a passagem do “realismo metafísico” ao “nominalismo” prejudicou o nosso entendimento do mundo físico como obra divina independente dos nossos conceitos; que o Renascimento tornou erradamente o homem como “medida de todas as coisas”; que a Reforma pôs em causa o conceito de autoridade; que o Iluminismo fez triunfar uma razão mecanicista; que a Revolução Industrial consumou o nefasto triunfo da técnica e dos mercados. E que a revolução sexual, iniciada na década de 1960 e concluída com o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a “ideologia do género”, estilhaçou a antropologia cristã e estabeleceu como único critério o “indivíduo autónomo, livre na sua escolha, que encontra o sentido em si mesmo”.
Essa última “derrota” levou o jornalista a conceber aquilo que designa como “opção beneditina”. Trata-se de tomar consciência de que os “cristãos ortodoxos” vivem em ambiente hostil, que as convicções cristãs são hoje uma “contracultura”, e que em breve serão consideradas apenas “preconceitos”, inadmissíveis à luz da lei. Essa forma de “exílio interior” há-de então gerar aquilo a que um dissidente católico checo, Václav Benda, chamou, noutro contexto, uma “pólis paralela”. E Dreher propõe como modelo a “opção beneditina”, referindo-se a São Bento, que no século VI, depois da queda de Roma, fundou o monasticismo ocidental com base numa regra simples mas exigente de oração, trabalho, ascetismo e comunidade.
O que não se compreende bem é a fronteira entre essas “comunidades dos crentes” e uma espécie de “opção Amish”: fuga à sociedade, rejeição da tecnologia, ensino doméstico, endogamia, intolerância. Sem dúvida que “o colapso da família natural, a perda dos valores morais tradicionais e a fragmentação das comunidades” são factos empíricos (embora tivéssemos de clarificar os termos “natural” e “tradicionais”), e que as ideias de “verdade pessoal” e “felicidade pessoal” apresentam dificuldades político-filosóficas, diagnosticadas aliás por autores que Dreher invoca, de Tocqueville à “modernidade líquida” de Bauman, passando pelo pessimismo ético de Alasdair MacIntyre em “After Virtue”. Mas o catastrofismo é a doença infantil do cristianismo. E a “opção” beneditina é, justamente isso, uma opção: se todos os cristãos fizessem a mesma escolha, trocariam o mundo dos homens por um mundo fechado, estanque. Basta abrir os Evangelhos para perceber quão pouco cristã é essa opção.
Pedro Mexia escreve de acordo com a antiga ortografia

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