Homem sábio, homem bom

RUI TAVARES   PÚBLICO    5.12.2018  

Quando penso em Fernando Belo, lembro-me da tríade que compunha a crença dos zoroastras. Essa tríade era simplesmente: bons pensamentos - bons gestos - boas palavras. Como se nada mais fosse preciso.


Conheci Fernando Belo pela primeira vez num debate organizado pela minha prima Irina numa escola secundária de Olivais/ Moscavide. Creio que o ano era 1993. O tema era o Maio de 68, nos seus 25 anos. Na mesa estava ele, que viveu em Paris durante o maio de 68, e era à altura padre católico; o historiador e escritor Paulo Varela Gomes; e eu (só sobrevivo eu; é a primeira vez que me acontece). Lembro-me que os estudantes queriam falar do passado. Paulo Varela Gomes queria falar do presente. E Fernando Belo falou do futuro. De inteligência artificial, do futuro do trabalho, de ecologia e de genética e de muitas outras coisas — temas que hoje estão na moda; em 1993 ainda não era bem assim. Foi a primeira vez, se não erro, que estive com o filósofo (que fora padre e antes disso fora engenheiro e que pelo meio fora diretor de jornal e creio que até autor de programas televisivos documentais) Fernando Belo. Mas eu já conhecia Fernando Belo antes porque para mim ele não era filósofo nem expadre nem nada disso mas simplesmente o pai do meu grande amigo da faculdade André Belo, com quem depois fui para França fazer o doutoramento

E por isso ele se tornou para nós rapidamente também o pai da Clara e do Zé Maria e o companheiro da Teresa Joaquim, também autora e professora. E por isso ele passou a ser, gradualmente, o homem de barbas grandes e olhos curiosos que nos recebia em casa dele e ouvia com abertura e atenção o que tivéssemos para lhe dizer de interessante, independentemente de idade ou trajetória ou origem. (Um dia, antes de se reformar, estava ele a avaliar testes. “Uma chatice”, dizia. Porquê, os alunos eram ignorantes? “Não, não, é porque quando dizem coisas interessantes fico depois imenso tempo a pensar naquilo e não cumpro com as minhas outras coisas”). Estou convencido de que a obra de Fernando Belo vai ser muito lida e inspirar muita gente no futuro. Como argumento apresento os seus dois últimos livros, cujos índices ele me mandou por e-mail antes da publicação (saíram recentemente pela Colibri). Um deles é um livro sobre “a unificação dos saberes”, um tema de toda a sua vida, a que costumava chamar “filosofi a com ciências”. O outro tem um título belíssimo e um subtítulo mais certeiro ainda: Seja um texto de paixão. Onde se mostra que sem a Filosofia não haveria Europa. O leitor pode achar que este livro me interessa porque nele se fala de Europa. E não errará. Só que mais importante ainda é o que está por detrás: a filosofia. E mais importante ainda é o que está por detrás da filosofi a: o amor, a amizade. 

Demoramos muitos anos a achar que a parte mais importante da palavra filosofia é a segunda metade, sofia, o conhecimento ou sabedoria, quando o que é decisivo é a primeira parte da palavra, philos, ser amigo ou amante da sabedoria. Com sofia apenas pode ser-se apenas um sofista, ou um sabichão. Para se ter o resto, que é o mais precioso, é preciso ter o ímpeto de amor ou amizade pelo conhecimento sem o qual este não vale a pena. E o que é esse resto, quando se tem tudo? E nós temos, de certa forma, tudo (está é mal distribuído). Temos um universo de dados potencialmente infinito em todas as direções. Dos dados, podemos extrair informação. Mas a informação não chega. Da informação, podemos extrair conhecimento. Mas o conhecimento não chega. E do conhecimento, ou melhor, do amor ao conhecimento, podemos extrair sabedoria. Mas mesmo a sabedoria não chega se não soubermos ser bons. Isto para os filósofos da Antiguidade era uma banalidade, porque a filosofia era uma forma de nos ajudar a viver (e preparar a morrer). Para os filósofos da Modernidade é possível que as camadas adicionais de complexidade nos tenham feito perder o fio à meada. O que é necessário agora é — para filósofos como, sobretudo, para não-filósofos — recuperar o valor dessa progressão até à sabedoria e à bondade que era então uma banalidade e que durante séculos se acreditou que poderia levar até à felicidade e à liberdade nesta vida (e não apenas após a morte e o fim do mundo). Claro, nem todos os filósofos, sejam homens ou mulheres, são bons. E nem todas, sejam mulheres ou homens, são sábias. Mas a necessidade de ser ambas as coisas não pode ser menorizada nem desprezada ao abrigo de um qualquer snobismo ou trollismo contemporâneo. Quando penso em Fernando Belo, lembro-me da tríade que compunha a crença dos zoroastras (antes dos gregos havia os persas; e o zoroastrianismo em que eles acreditavam já era uma crença velha quando o cristianismo era jovem e até mesmo antes, quando Aristóteles e Platão estavam vivos). Essa tríade era simplesmente: bons pensamentos — bons gestos — boas palavras. Como se nada mais fosse preciso. Se calhar não é. Estão sempre muitas coisas a acontecer no mundo. Mas se não pararmos para lembrar as pessoas que nos ajudam a fazer sentido delas, limitar-nos-emos a viver aquela vida inconsiderada que segundo os primeiros filósofos não merecia a pena ser vivida. Além disso, Fernando Belo era um leitor atento desta crónica, e foram dezenas as vezes que escreveu ao rapazote que era amigo do filho dele para concordar ou discordar. 

Hoje é a primeira vez que sei que não o vai fazer. Não sei se concordaria ou não. Mas sei como terminaria a mensagem: “boas coisas!”. E é assim que vou terminar, para ele e para nós: boas coisas.

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