O Terror e a Esquerda
ANTÓNIO BARRETO
Público , Domingo, 14 de Outubro de 2001
A esquerda sempre teve um problema com a violência e o terrorismo. Há excepções, um partido aqui, um dirigente ali, um governante acolá, um pensador mais além. Mas, no conjunto e ao longo da história recente, jamais a esquerda conseguiu libertar-se desta espécie de hipoteca filosófica. "A violência é parteira da história". "Há terrorismo necessário". "A revolta violenta das massas oprimidas é legítima". "A violência revolucionária é a resposta das massas exploradas à violência da burguesia". "Nas revoluções há sempre vítimas inocentes". Eis alguns exemplos de frases conhecidas há décadas. Com isto, a maior parte da esquerda nunca condenou integralmente, quaisquer que fossem os seus autores e os seus alvos, o terrorismo. A maior parte da esquerda nunca distinguiu rigorosamente a violência legítima do terrorismo.
Sempre a esquerda, com excepções, se sentiu desconfortável com o terrorismo. Porque desde sempre considerou que a violência é um meio necessário e legítimo para atingir os seus fins. É possível que a origem desta atitude tenha raízes antigas, mas, nos tempos modernos, talvez se possa datar dos tempos da revolução francesa. "O governo da República é o despotismo da liberdade contra a tirania", garantia Robespierre e Saint-Just, quando defendiam a necessidade do uso do terror. Mais tarde, Sorel defendeu o uso de terror, pois só assim se poderia termo à "violência das instituições". Lenine e Trotski não se limitaram a defender o uso da violência: aplicaram-na em larga escala, nunca se deixando intimidar perante as acusações de terror que lhes eram justamente feitas. Trotski, aliás, foi mais longe e "resolveu", em livro célebre, o problema teórico: dados os objectivos políticos finais, a moral dos comunistas era superior à dos conservadores, facto que justificava que eles, comunistas do Exército Vermelho, pudessem tomar e executar reféns, assassinar civis e aterrorizar populações. Com Estaline, o terrorismo ganhou pergaminhos de método de governo. Com as ditaduras de esquerda no Terceiro Mundo, o terrorismo alastrou, com uma novo atributo: a culpa era do imperialismo e do capitalismo. Com os anos sessenta, chegaram novas modas e o terrorismo esquerdista foi feito forma superior de luta.
A revolução francesa e, mais tarde, o socialismo, o comunismo e a revolução social, com a ajuda de algumas franjas anarquistas, contribuíram para apertar o laço entre grande parte da esquerda e a violência revolucionária, a qual, quase sempre, inclui formas de terrorismo. A revolução russa, o anti-fascismo, o anti-imperialismo e a luta contra as formas modernas de capitalismo confirmaram esta perversa relação. Com uma consequência suplementar: se é verdade que uma parte da esquerda (dita moderada, por vezes independente, frequentemente social democrata) é inimiga da violência, sejam quem forem os autores ou os alvos, também não é menos certo que mesmo essa esquerda se sente desconfortável quando o terror se reclama de causas sociais.
Com excepção dos comunistas durante o pacto germano-soviético, a esquerda não hesitou em atacar o terrorismo de Hitler e a violência de Mussolini, Salazar ou Pinochet, mas desculpou e muitas vezes apoiou o terrorismo de Estaline e a violência de Mao Tsé Tung e Fidel Castro. Grande parte da esquerda revela complacência, quando não cumplicidade, com o terrorismo nacionalista e minoritário da ETA, do IRA, da Fracção do Exército Vermelho alemão e da Brigadas Vermelhas italianas. A maior parte da esquerda esteve justamente atenta às intervenções europeias e americanas em África, na Ásia e sobretudo no Vietname, mas foi incapaz do mesmo critério cada vez que os Soviéticos agiram com violência, ilegitimidade e terror. Boa parte da esquerda portuguesa não conseguiu condenar o terrorismo das FP-25 ou das BR, como já antes não tinha conseguido estabelecer a diferença entre as guerras de libertação colonial e os actos terroristas cometidos pelos respectivos movimentos em Angola, em Moçambique ou na Argélia.
O terrorismo pode ser praticado e apoiado por ditadores, governos reconhecidos, milionários, filhos-famílias, oficiais do exército, filósofos em busca da redenção e traficantes de droga. Mas, desde que invoque razões revolucionárias e causas profundas, é logo fonte de mal-estar para a esquerda. Ou de regozijo. Mais: se as vítimas, mesmo inocentes, mesmo civis, mesmo de todas as condições sociais, forem de nacionalidade suspeita, isto é, americanos ou europeus, o terror ganha estatuto de acto político sobre o qual é necessário reflectir. Se os alvos simbólicos do terrorismo puderem ser claramente identificados com os poderosos (edifícios governamentais, quartéis, esquadras, bancos, empresas...), então as dúvidas desaparecem: o gesto assassino é equiparado à justa revolta. Houve mesmo quem, na esquerda portuguesa, comparasse os terroristas a David e Nova Iorque a Golias!
Os critérios de análise de grande parte da esquerda parecem mutáveis. O mesmo gesto seria diversa e arbitrariamente avaliado: apoio em certos casos, condenação em outros, complacência noutros ainda. Mas, na verdade, o critério é mais permanente do que parece. A avaliação do terrorismo depende de quem o pratica. E de quem é visado. Se os terroristas forem esquerdistas confessos, amigos da esquerda ou defensores proclamados das suas ideias; se pertencerem a movimentos ou partidos conotados com a esquerda; e se falarem em nome dos pobres, dos trabalhadores, dos oprimidos ou de minorias consideradas amigas; nessas circunstâncias, o terrorismo é justificado, compreendido e explicado. Ou pelo menos desculpado. Quanto ao alvo, o critério é idêntico: importante é a identidade de quem é politicamente visado. Se for o ocidente, a sua cultura e a sua economia; se for a democracia e respectivos governos; se forem os americanos e os europeus em geral; e se forem os poderosos do ocidente, assim como os seus amigos pelo mundo fora, os capitalistas, as instituições democráticas, as multinacionais e algumas igrejas e religiões; também nessas circunstâncias o terrorismo deve ser desculpado ou tolerado, que é o que a esquerda pretende quando afirma, com aparente
Público , Domingo, 14 de Outubro de 2001
A esquerda sempre teve um problema com a violência e o terrorismo. Há excepções, um partido aqui, um dirigente ali, um governante acolá, um pensador mais além. Mas, no conjunto e ao longo da história recente, jamais a esquerda conseguiu libertar-se desta espécie de hipoteca filosófica. "A violência é parteira da história". "Há terrorismo necessário". "A revolta violenta das massas oprimidas é legítima". "A violência revolucionária é a resposta das massas exploradas à violência da burguesia". "Nas revoluções há sempre vítimas inocentes". Eis alguns exemplos de frases conhecidas há décadas. Com isto, a maior parte da esquerda nunca condenou integralmente, quaisquer que fossem os seus autores e os seus alvos, o terrorismo. A maior parte da esquerda nunca distinguiu rigorosamente a violência legítima do terrorismo.
Sempre a esquerda, com excepções, se sentiu desconfortável com o terrorismo. Porque desde sempre considerou que a violência é um meio necessário e legítimo para atingir os seus fins. É possível que a origem desta atitude tenha raízes antigas, mas, nos tempos modernos, talvez se possa datar dos tempos da revolução francesa. "O governo da República é o despotismo da liberdade contra a tirania", garantia Robespierre e Saint-Just, quando defendiam a necessidade do uso do terror. Mais tarde, Sorel defendeu o uso de terror, pois só assim se poderia termo à "violência das instituições". Lenine e Trotski não se limitaram a defender o uso da violência: aplicaram-na em larga escala, nunca se deixando intimidar perante as acusações de terror que lhes eram justamente feitas. Trotski, aliás, foi mais longe e "resolveu", em livro célebre, o problema teórico: dados os objectivos políticos finais, a moral dos comunistas era superior à dos conservadores, facto que justificava que eles, comunistas do Exército Vermelho, pudessem tomar e executar reféns, assassinar civis e aterrorizar populações. Com Estaline, o terrorismo ganhou pergaminhos de método de governo. Com as ditaduras de esquerda no Terceiro Mundo, o terrorismo alastrou, com uma novo atributo: a culpa era do imperialismo e do capitalismo. Com os anos sessenta, chegaram novas modas e o terrorismo esquerdista foi feito forma superior de luta.
A revolução francesa e, mais tarde, o socialismo, o comunismo e a revolução social, com a ajuda de algumas franjas anarquistas, contribuíram para apertar o laço entre grande parte da esquerda e a violência revolucionária, a qual, quase sempre, inclui formas de terrorismo. A revolução russa, o anti-fascismo, o anti-imperialismo e a luta contra as formas modernas de capitalismo confirmaram esta perversa relação. Com uma consequência suplementar: se é verdade que uma parte da esquerda (dita moderada, por vezes independente, frequentemente social democrata) é inimiga da violência, sejam quem forem os autores ou os alvos, também não é menos certo que mesmo essa esquerda se sente desconfortável quando o terror se reclama de causas sociais.
Com excepção dos comunistas durante o pacto germano-soviético, a esquerda não hesitou em atacar o terrorismo de Hitler e a violência de Mussolini, Salazar ou Pinochet, mas desculpou e muitas vezes apoiou o terrorismo de Estaline e a violência de Mao Tsé Tung e Fidel Castro. Grande parte da esquerda revela complacência, quando não cumplicidade, com o terrorismo nacionalista e minoritário da ETA, do IRA, da Fracção do Exército Vermelho alemão e da Brigadas Vermelhas italianas. A maior parte da esquerda esteve justamente atenta às intervenções europeias e americanas em África, na Ásia e sobretudo no Vietname, mas foi incapaz do mesmo critério cada vez que os Soviéticos agiram com violência, ilegitimidade e terror. Boa parte da esquerda portuguesa não conseguiu condenar o terrorismo das FP-25 ou das BR, como já antes não tinha conseguido estabelecer a diferença entre as guerras de libertação colonial e os actos terroristas cometidos pelos respectivos movimentos em Angola, em Moçambique ou na Argélia.
O terrorismo pode ser praticado e apoiado por ditadores, governos reconhecidos, milionários, filhos-famílias, oficiais do exército, filósofos em busca da redenção e traficantes de droga. Mas, desde que invoque razões revolucionárias e causas profundas, é logo fonte de mal-estar para a esquerda. Ou de regozijo. Mais: se as vítimas, mesmo inocentes, mesmo civis, mesmo de todas as condições sociais, forem de nacionalidade suspeita, isto é, americanos ou europeus, o terror ganha estatuto de acto político sobre o qual é necessário reflectir. Se os alvos simbólicos do terrorismo puderem ser claramente identificados com os poderosos (edifícios governamentais, quartéis, esquadras, bancos, empresas...), então as dúvidas desaparecem: o gesto assassino é equiparado à justa revolta. Houve mesmo quem, na esquerda portuguesa, comparasse os terroristas a David e Nova Iorque a Golias!
Os critérios de análise de grande parte da esquerda parecem mutáveis. O mesmo gesto seria diversa e arbitrariamente avaliado: apoio em certos casos, condenação em outros, complacência noutros ainda. Mas, na verdade, o critério é mais permanente do que parece. A avaliação do terrorismo depende de quem o pratica. E de quem é visado. Se os terroristas forem esquerdistas confessos, amigos da esquerda ou defensores proclamados das suas ideias; se pertencerem a movimentos ou partidos conotados com a esquerda; e se falarem em nome dos pobres, dos trabalhadores, dos oprimidos ou de minorias consideradas amigas; nessas circunstâncias, o terrorismo é justificado, compreendido e explicado. Ou pelo menos desculpado. Quanto ao alvo, o critério é idêntico: importante é a identidade de quem é politicamente visado. Se for o ocidente, a sua cultura e a sua economia; se for a democracia e respectivos governos; se forem os americanos e os europeus em geral; e se forem os poderosos do ocidente, assim como os seus amigos pelo mundo fora, os capitalistas, as instituições democráticas, as multinacionais e algumas igrejas e religiões; também nessas circunstâncias o terrorismo deve ser desculpado ou tolerado, que é o que a esquerda pretende quando afirma, com aparente
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