A Guerra e o Crime
Portugal Diário 28-10-2001 18:06:26
António Barreto
Logo após o 11 de Setembro, foram dados, pelo governo americano, sinais confusos. Falou-se sucessivamente de «guerra» e «guerra ao terrorismo», o que não é exactamente a mesma coisa. Falou-se de seguida em «trazer os criminosos perante a justiça», logo se corrigindo com um acrescento «ou levando a justiça aos criminosos». Depois, a primeira designação da campanha política e militar em curso, «justiça infinita», foi de uma infelicidade a toda a prova, revelando seguramente um estado de espírito perturbado. O termo «cruzada», com toda a sua carga histórica e religiosa, foi utilizado frequentemente, pelo menos nos primeiros tempos. Não faltou muito tempo para que George W. Bush, numa velha tradição do «west», a meio caminho entre a guerra e a justiça, proclamasse que procurava Bin Laden «vivo ou morto».
Com os dias, gradualmente, foram sendo feitas correcções políticas. Estamos hoje perante uma situação um pouco mais clara, apesar de subsistirem, naturalmente, zonas de indeterminação. Temos assim, em paralelo, duas acções ou dois esforços: o de guerra e o esforço de justiça. Como temos ainda uma acção nacional por parte da potência americana; uma acção internacional da mesma; uma acção internacional política e militar à qual aderem vários Estados; e uma acção colectiva política e jurídica conduzida no âmbito das Nações Unidas. Como está de ver, a articulação entre estes vários níveis e estas diversas modalidades de intervenção é muito difícil, contraditória por vezes. Creio, todavia, que, numa situação tão complexa como esta, seria de esperar.
Uma das discussões mais importantes sobre a natureza das acções em curso é a que se realiza à volta do recurso à justiça para resolução dos conflitos conhecidos e futuros. Na retórica americana, aliada e internacional (designadamente no seio das Nações Unidas), a referência à justiça é permanente. Mas em quase todos os outros quadrantes se verifica o mesmo fenómeno. Os aliados dos americanos reclamam o respeito pelas normas de direito internacional. Os pacifistas e os adversários da resposta militar propõem a justiça como alternativa à guerra. Os Talibans e os terroristas exigem provas do seu envolvimento nos ataques de Setembro. Parece pois haver consenso sobre a necessidade de accionar os processos judiciários disponíveis, sendo que, evidentemente, não existe unanimidade, longe disso, quanto à jurisdição adequada. Um Tribunal internacional existente? Um Tribunal especial ou «ad hoc»? Um Tribunal americano? Um Tribunal «misto», americano e muçulmano? Um Tribunal «neutro»? Também não existe, aliás, entendimento comum quanto ao regime penal a aplicar em tal eventualidade: a hipótese da pena de morte, por exemplo, impede um acordo fundamental. Parecem questões menores, mas não são. Creio, todavia, que só muito mais tarde teremos decisões sobre a jurisdição competente e o regime penal aplicável. Antes disso, outros problemas mais importantes necessitam de resolução.
Um problema prévio reside evidentemente nos conceitos. Não estamos diante de factos exclusivamente do foro criminal e judicial. Pela dimensão dos actos, pela sua amplitude, pela organização, pelo apoio de Estados organizados, pelo tipo de operações desencadeadas, pelo número de vítimas já causadas e pela forma como as primeiras respostas estão a ser realizadas, estamos numa situação de guerra. Não seguramente uma guerra clássica e típica, com declarações formais, exércitos organizados, bandeiras visíveis, territórios em causa, objectivos definidos e inimigos declarados. Trata-se de uma guerra de tipo novo, internacional e multinacional, de inimigos parcialmente difusos, de bases territoriais dispersas, de organização militar e civil, de bandeiras invisíveis e de objectivos indeterminados. Entre estes últimos, a criação do terror sobrepõe-se a uma eventual conquista ou a uma derrota militar, finalidades clássicas.
A ideia de que se trata de uma guerra de tipo novo não é mais um artificialismo. Para só falar no século XX, assistimos em vários momentos à emergência de novos tipos de guerra, que se vieram acrescentar às guerras clássicas e às guerras «civis» bem conhecidas. Como sejam as guerras de libertação e de independência colonial; as guerras de guerrilha; ou as guerras simultaneamente civis e internacionais, como no caso do Próximo Oriente. Para já não referir as «guerras mundiais», a primeira e a segunda, que trouxeram às ciências militares novas dimensões. E sem esquecer questões aparentemente técnicas, mas que, na verdade, introduziram novas categorias: o bombardeamento indiscriminado de populações civis e de infra-estruturas económicas é uma triste aquisição do século XX. Finalmente, convém não deixar de lado certas manifestações de guerra, cuja codificação teórica ainda não está feita, mas que constituem novas modalidades: são os casos, por exemplo, das intervenções e dos bombardeamentos na antiga Jugoslávia e no Iraque.
É provável que as futuras guerras sejam, em grande parte, de novos tipos. O colossal desequilíbrio de armamentos e de capacidade militar faz com que muitos dos interessados em desencadear operações bélicas procurem novos modos de acção, entre os quais o terrorismo (e as guerras mais «baratas», como as químicas e as bacteriológicas ou as que recorrem a agentes suicidas). As guerras clássicas, internacionais ou «civis», ocorrerão sobretudo entre países de idêntica capacidade militar e económica ou dentro de países da débil organização política, económica e administrativa. Se envolverem as grandes potências, muito especialmente os Estados Unidos, as guerras tenderão a ser de novo tipo, particularmente recorrendo ao terrorismo.
Quer isto dizer que têm razão os que consideram que está em curso uma guerra e não uma mera procura de criminosos para os levar a tribunal. Espera-se, evidentemente, que tudo ou o mais possível seja feito dentro das regras, até porque existem regras para a condução de operações militares e de guerras internacionais. Seria excelente que, terminada a guerra, fosse possível julgar, em tribunal a definir, alguns dos principais autores e inspiradores dos actos de terror de massas já perpetrados. Mas creio que não devemos criar falsas expectativas. O primeiro objectivo de uma guerra consiste em derrotar o inimigo, o que significa sempre liquidar alguém. Não parece realista, nem sequer particularmente bem intencionado, esperar que os dirigentes das organizações terroristas e alguns dos responsáveis pelo regime Taliban venham a ser, um dia, julgados com todas as regras processuais dos tribunais penais democráticos. Não é a vontade de vingança que conduz a esta conclusão, mas tão só uma visão serena e racional do que é uma guerra e das circunstâncias em que se processa. Não consigo prever ou sequer imaginar operações de polícia destinadas a prender os chefes terroristas e a conduzi-los, salvaguardados os seus direitos constitucionais, à esquadra mais próxima, a fim de serem ouvidos pelo juiz de instrução. Como não sou capaz de antever os chefes terroristas, uns militares, outros políticos, alguns dos quais com formação militar, renderem-se diante de uma força policial.
A guerra não é a abolição total de regras políticas e morais, como alguns poderão dizer. É verdade que tais regras são, muito frequentemente, violadas. Mas existe hoje um património da humanidade composto por convénios, tratados, regras jurídicas e normas morais que conferem alguma «humanidade» à guerra, se assim se pode falar. Como se sabe, existem códigos relativos ao tratamento de civis e de militares, de prisioneiros de guerra, de espiões, de «traidores», do uso de certos armamentos, de respeito pela dignidade dos soldados e de acesso a meios de socorro. O respeito por tais regras, como a proibição de tortura de soldados, por exemplo, é um valor positivo de qualquer sociedade. Mas tenhamos consciência de que a guerra implica morte. Mesmo em países onde a pena de morte não existe. A guerra implica crueldade, porque matar é o objectivo. A guerra implica a existência de inimigos que procuram simplesmente derrotar-se e aniquilar-se. Custa dizer, mas é assim.
António Barreto
Logo após o 11 de Setembro, foram dados, pelo governo americano, sinais confusos. Falou-se sucessivamente de «guerra» e «guerra ao terrorismo», o que não é exactamente a mesma coisa. Falou-se de seguida em «trazer os criminosos perante a justiça», logo se corrigindo com um acrescento «ou levando a justiça aos criminosos». Depois, a primeira designação da campanha política e militar em curso, «justiça infinita», foi de uma infelicidade a toda a prova, revelando seguramente um estado de espírito perturbado. O termo «cruzada», com toda a sua carga histórica e religiosa, foi utilizado frequentemente, pelo menos nos primeiros tempos. Não faltou muito tempo para que George W. Bush, numa velha tradição do «west», a meio caminho entre a guerra e a justiça, proclamasse que procurava Bin Laden «vivo ou morto».
Com os dias, gradualmente, foram sendo feitas correcções políticas. Estamos hoje perante uma situação um pouco mais clara, apesar de subsistirem, naturalmente, zonas de indeterminação. Temos assim, em paralelo, duas acções ou dois esforços: o de guerra e o esforço de justiça. Como temos ainda uma acção nacional por parte da potência americana; uma acção internacional da mesma; uma acção internacional política e militar à qual aderem vários Estados; e uma acção colectiva política e jurídica conduzida no âmbito das Nações Unidas. Como está de ver, a articulação entre estes vários níveis e estas diversas modalidades de intervenção é muito difícil, contraditória por vezes. Creio, todavia, que, numa situação tão complexa como esta, seria de esperar.
Uma das discussões mais importantes sobre a natureza das acções em curso é a que se realiza à volta do recurso à justiça para resolução dos conflitos conhecidos e futuros. Na retórica americana, aliada e internacional (designadamente no seio das Nações Unidas), a referência à justiça é permanente. Mas em quase todos os outros quadrantes se verifica o mesmo fenómeno. Os aliados dos americanos reclamam o respeito pelas normas de direito internacional. Os pacifistas e os adversários da resposta militar propõem a justiça como alternativa à guerra. Os Talibans e os terroristas exigem provas do seu envolvimento nos ataques de Setembro. Parece pois haver consenso sobre a necessidade de accionar os processos judiciários disponíveis, sendo que, evidentemente, não existe unanimidade, longe disso, quanto à jurisdição adequada. Um Tribunal internacional existente? Um Tribunal especial ou «ad hoc»? Um Tribunal americano? Um Tribunal «misto», americano e muçulmano? Um Tribunal «neutro»? Também não existe, aliás, entendimento comum quanto ao regime penal a aplicar em tal eventualidade: a hipótese da pena de morte, por exemplo, impede um acordo fundamental. Parecem questões menores, mas não são. Creio, todavia, que só muito mais tarde teremos decisões sobre a jurisdição competente e o regime penal aplicável. Antes disso, outros problemas mais importantes necessitam de resolução.
Um problema prévio reside evidentemente nos conceitos. Não estamos diante de factos exclusivamente do foro criminal e judicial. Pela dimensão dos actos, pela sua amplitude, pela organização, pelo apoio de Estados organizados, pelo tipo de operações desencadeadas, pelo número de vítimas já causadas e pela forma como as primeiras respostas estão a ser realizadas, estamos numa situação de guerra. Não seguramente uma guerra clássica e típica, com declarações formais, exércitos organizados, bandeiras visíveis, territórios em causa, objectivos definidos e inimigos declarados. Trata-se de uma guerra de tipo novo, internacional e multinacional, de inimigos parcialmente difusos, de bases territoriais dispersas, de organização militar e civil, de bandeiras invisíveis e de objectivos indeterminados. Entre estes últimos, a criação do terror sobrepõe-se a uma eventual conquista ou a uma derrota militar, finalidades clássicas.
A ideia de que se trata de uma guerra de tipo novo não é mais um artificialismo. Para só falar no século XX, assistimos em vários momentos à emergência de novos tipos de guerra, que se vieram acrescentar às guerras clássicas e às guerras «civis» bem conhecidas. Como sejam as guerras de libertação e de independência colonial; as guerras de guerrilha; ou as guerras simultaneamente civis e internacionais, como no caso do Próximo Oriente. Para já não referir as «guerras mundiais», a primeira e a segunda, que trouxeram às ciências militares novas dimensões. E sem esquecer questões aparentemente técnicas, mas que, na verdade, introduziram novas categorias: o bombardeamento indiscriminado de populações civis e de infra-estruturas económicas é uma triste aquisição do século XX. Finalmente, convém não deixar de lado certas manifestações de guerra, cuja codificação teórica ainda não está feita, mas que constituem novas modalidades: são os casos, por exemplo, das intervenções e dos bombardeamentos na antiga Jugoslávia e no Iraque.
É provável que as futuras guerras sejam, em grande parte, de novos tipos. O colossal desequilíbrio de armamentos e de capacidade militar faz com que muitos dos interessados em desencadear operações bélicas procurem novos modos de acção, entre os quais o terrorismo (e as guerras mais «baratas», como as químicas e as bacteriológicas ou as que recorrem a agentes suicidas). As guerras clássicas, internacionais ou «civis», ocorrerão sobretudo entre países de idêntica capacidade militar e económica ou dentro de países da débil organização política, económica e administrativa. Se envolverem as grandes potências, muito especialmente os Estados Unidos, as guerras tenderão a ser de novo tipo, particularmente recorrendo ao terrorismo.
Quer isto dizer que têm razão os que consideram que está em curso uma guerra e não uma mera procura de criminosos para os levar a tribunal. Espera-se, evidentemente, que tudo ou o mais possível seja feito dentro das regras, até porque existem regras para a condução de operações militares e de guerras internacionais. Seria excelente que, terminada a guerra, fosse possível julgar, em tribunal a definir, alguns dos principais autores e inspiradores dos actos de terror de massas já perpetrados. Mas creio que não devemos criar falsas expectativas. O primeiro objectivo de uma guerra consiste em derrotar o inimigo, o que significa sempre liquidar alguém. Não parece realista, nem sequer particularmente bem intencionado, esperar que os dirigentes das organizações terroristas e alguns dos responsáveis pelo regime Taliban venham a ser, um dia, julgados com todas as regras processuais dos tribunais penais democráticos. Não é a vontade de vingança que conduz a esta conclusão, mas tão só uma visão serena e racional do que é uma guerra e das circunstâncias em que se processa. Não consigo prever ou sequer imaginar operações de polícia destinadas a prender os chefes terroristas e a conduzi-los, salvaguardados os seus direitos constitucionais, à esquadra mais próxima, a fim de serem ouvidos pelo juiz de instrução. Como não sou capaz de antever os chefes terroristas, uns militares, outros políticos, alguns dos quais com formação militar, renderem-se diante de uma força policial.
A guerra não é a abolição total de regras políticas e morais, como alguns poderão dizer. É verdade que tais regras são, muito frequentemente, violadas. Mas existe hoje um património da humanidade composto por convénios, tratados, regras jurídicas e normas morais que conferem alguma «humanidade» à guerra, se assim se pode falar. Como se sabe, existem códigos relativos ao tratamento de civis e de militares, de prisioneiros de guerra, de espiões, de «traidores», do uso de certos armamentos, de respeito pela dignidade dos soldados e de acesso a meios de socorro. O respeito por tais regras, como a proibição de tortura de soldados, por exemplo, é um valor positivo de qualquer sociedade. Mas tenhamos consciência de que a guerra implica morte. Mesmo em países onde a pena de morte não existe. A guerra implica crueldade, porque matar é o objectivo. A guerra implica a existência de inimigos que procuram simplesmente derrotar-se e aniquilar-se. Custa dizer, mas é assim.
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