O "MAS" DA TRAGÉDIA ou A TRAGÉDIA DO "MAS"?
António Bagão Félix
2001-10-11
Com a tragédia de 11 de Setembro, o coração da dignidade da pessoa humana foi esventrado de uma maneira inimaginavelmente brutal.
O mais insondável obscurantismo aliou-se terrificamente ao fenómeno de banalização das sofisticadas tecnologias do progresso, para destruir e matar cegamente.
Porque a "distância" entre crime e castigo é, neste caso, perturbadoramente assimétrica, a busca persistente da justa justiça vai ser tarefa bem árdua, num atentado que foi direito às entranhas dos valores civilizacionais (e não apenas americanos).
É preciso ser claro: a questão aqui não é ideológica, religiosa, política, intelectual. É "apenas" e na sua essência humana e moral. Não há fins que possam justificar meios tão demoníacos.
Quase metade dos países deste mundo têm homens e mulheres mortos nesta tragédia. Sessenta e dois, mais precisamente. Que outro ponto do Mundo poderia melhor representar a humanidade no caleidoscópio das nações, etnias, confissões? No meio de tanta impureza e injustiça a começar na cidade da tragédia não é isto um sinal de tolerância, liberdade e convivência, que é do melhor que há na nossa civilização?
A barreira a barreira da vida - foi gratuitamente quebrada. Quem quiser estar do lado da morte como solução para seja o que for, sabe que entra num pântano de onde já não se sai. A vida não se relativiza, nem é moeda de troca.
A hora é dramaticamente difícil. Por isso, mais do que nunca, é necessário saber conciliar a firmeza da luta contra o terror e a impunidade com a fortaleza da serenidade.
A esta desordem internacional em que se misturam factores explosivos de fanatismo letal, indignidade humana, relativismo ético, globalização do terror e indiferença do sofrimento, é imperativo responder com o mais elevado e rigoroso sentido de justiça, na esperança de uma total concertação no combate ao mal e ao mesmo tempo profundamente despertos para com o sofrimento humano que grassa no mundo.
Seja-me permitido destacar apenas uma das várias causas desta desordem: o relativismo.
É o relativismo que nos põe a caminhar sobre um algodão movediço.
É o relativismo que amolece as consciências boas e endurece as satânicas.
É o relativismo que torna algumas pessoas apenas mais animais.
É o relativismo que quase anestesia os comportamentos letais, porque retira valor absoluto à vida.
É o relativismo que faz germinar a indiferença e o comodismo atrofiantes.
É o relativismo que faz ricos e pobres consumir-se no consumismo, espécie de "ecstasy-do-dia-seguinte".
É o relativismo que corrompe almas por troca com uma qualquer mordomia.
É o relativismo que alcandorou a estatística à categoria de mãe de todas as análises frias e racionais.
É ainda o relativismo que subjuga o importante ao efémero aparentemente urgente.
É o relativismo que igualiza, moralmente, fins e meios.
É o relativismo que encurta a memória e despreza a sabedoria.
É o relativismo que nos afasta da transcendência e da procura de nós mesmos.
É o relativismo que usa e abusa das conjunções adversativas, dominadas altaneiramente pela mais curta mas também a mais demolidora: mas. Simplesmente mas.
"Isto e aquilo foi um horror, mas...", "Tenho muita pena, mas..", "Aconteceu assim, mas..", "Os Estados Unidos foram atacados, mas..."
O mas está para o relativismo, como o não está para o individualismo.
O mas é o não obstante do sofrimento. O sofrimento não é o não obstante do mas.
O mas é a penitência laica do pecado para enfraquecer o código moral sob a bondosa semântica de um qualquer mas apresentado como símbolo de uma certa tolerância bacoca, falsa e diluente.
O mas é a versão intelectual do cínico que perverte a hierarquia e reduz a pó o valor das palavras, actos e pensamentos. Daí a sua consequência (matemática) do mais ou menos que mais não é que o intervalo da nossa indiferença, debilidade ou cobardia.
O mas é o dissolvente do bem e do mal no novo reino das opiniões e impressões, onde nada vale porque tudo vale. Uma nova amiba (a)moral que tudo aceita excepto quando nos atinge na nossa pequenez.
Fazer o mal para atingir o bem? Chegar ao Tudo através do nada? Demonizar o absurdo para desvendar o Mistério? Apodrecer no relativo para alcançar o Absoluto?
Neste trágico luto para a humanidade, temo, ao contrário do que até parece evidente, a "normalização" das consciências trucidadas por um quotidiano que não deixa as pessoas serem, mas tão só estarem.
Passada a hora do compulsivo unanimismo emocional, já aí estão os tiques primariamente anti-americanos.
À falta de melhor, a América é a posta restante ou o tumor de fixação de certa intelectualidade empanturrada até ao esófago de ícones americanos que tanto escarnecem.
E já são visíveis, ao menos implicitamente, manifestações de alguma simpatia (ou, pelo menos, compassiva compreensão) para regimes obscurantistas que apenas a si devem o atraso e a mentalidade intoleravelmente doentia em que imergiram.
A pouco e pouco a globalização do sentimento será tomada pela privatização da dor. A vida regressará ao vaivém de um pêndulo de uma viagem onde o tempo sem mostrador se entrecruza com um espaço de vida minimal.
Que de toda esta tragédia humana possa sair o fortalecimento da justiça, da paz, do inconformismo perante o sofrimento, da salvaguarda de valores perenes e inegociáveis da civilização, entre os quais e acima de todos está o (mais) absoluto: o respeito pela Vida.
António Bagão Félix
Presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz
O mais insondável obscurantismo aliou-se terrificamente ao fenómeno de banalização das sofisticadas tecnologias do progresso, para destruir e matar cegamente.
Porque a "distância" entre crime e castigo é, neste caso, perturbadoramente assimétrica, a busca persistente da justa justiça vai ser tarefa bem árdua, num atentado que foi direito às entranhas dos valores civilizacionais (e não apenas americanos).
É preciso ser claro: a questão aqui não é ideológica, religiosa, política, intelectual. É "apenas" e na sua essência humana e moral. Não há fins que possam justificar meios tão demoníacos.
Quase metade dos países deste mundo têm homens e mulheres mortos nesta tragédia. Sessenta e dois, mais precisamente. Que outro ponto do Mundo poderia melhor representar a humanidade no caleidoscópio das nações, etnias, confissões? No meio de tanta impureza e injustiça a começar na cidade da tragédia não é isto um sinal de tolerância, liberdade e convivência, que é do melhor que há na nossa civilização?
A barreira a barreira da vida - foi gratuitamente quebrada. Quem quiser estar do lado da morte como solução para seja o que for, sabe que entra num pântano de onde já não se sai. A vida não se relativiza, nem é moeda de troca.
A hora é dramaticamente difícil. Por isso, mais do que nunca, é necessário saber conciliar a firmeza da luta contra o terror e a impunidade com a fortaleza da serenidade.
A esta desordem internacional em que se misturam factores explosivos de fanatismo letal, indignidade humana, relativismo ético, globalização do terror e indiferença do sofrimento, é imperativo responder com o mais elevado e rigoroso sentido de justiça, na esperança de uma total concertação no combate ao mal e ao mesmo tempo profundamente despertos para com o sofrimento humano que grassa no mundo.
Seja-me permitido destacar apenas uma das várias causas desta desordem: o relativismo.
É o relativismo que nos põe a caminhar sobre um algodão movediço.
É o relativismo que amolece as consciências boas e endurece as satânicas.
É o relativismo que torna algumas pessoas apenas mais animais.
É o relativismo que quase anestesia os comportamentos letais, porque retira valor absoluto à vida.
É o relativismo que faz germinar a indiferença e o comodismo atrofiantes.
É o relativismo que faz ricos e pobres consumir-se no consumismo, espécie de "ecstasy-do-dia-seguinte".
É o relativismo que corrompe almas por troca com uma qualquer mordomia.
É o relativismo que alcandorou a estatística à categoria de mãe de todas as análises frias e racionais.
É ainda o relativismo que subjuga o importante ao efémero aparentemente urgente.
É o relativismo que igualiza, moralmente, fins e meios.
É o relativismo que encurta a memória e despreza a sabedoria.
É o relativismo que nos afasta da transcendência e da procura de nós mesmos.
É o relativismo que usa e abusa das conjunções adversativas, dominadas altaneiramente pela mais curta mas também a mais demolidora: mas. Simplesmente mas.
"Isto e aquilo foi um horror, mas...", "Tenho muita pena, mas..", "Aconteceu assim, mas..", "Os Estados Unidos foram atacados, mas..."
O mas está para o relativismo, como o não está para o individualismo.
O mas é o não obstante do sofrimento. O sofrimento não é o não obstante do mas.
O mas é a penitência laica do pecado para enfraquecer o código moral sob a bondosa semântica de um qualquer mas apresentado como símbolo de uma certa tolerância bacoca, falsa e diluente.
O mas é a versão intelectual do cínico que perverte a hierarquia e reduz a pó o valor das palavras, actos e pensamentos. Daí a sua consequência (matemática) do mais ou menos que mais não é que o intervalo da nossa indiferença, debilidade ou cobardia.
O mas é o dissolvente do bem e do mal no novo reino das opiniões e impressões, onde nada vale porque tudo vale. Uma nova amiba (a)moral que tudo aceita excepto quando nos atinge na nossa pequenez.
Fazer o mal para atingir o bem? Chegar ao Tudo através do nada? Demonizar o absurdo para desvendar o Mistério? Apodrecer no relativo para alcançar o Absoluto?
Neste trágico luto para a humanidade, temo, ao contrário do que até parece evidente, a "normalização" das consciências trucidadas por um quotidiano que não deixa as pessoas serem, mas tão só estarem.
Passada a hora do compulsivo unanimismo emocional, já aí estão os tiques primariamente anti-americanos.
À falta de melhor, a América é a posta restante ou o tumor de fixação de certa intelectualidade empanturrada até ao esófago de ícones americanos que tanto escarnecem.
E já são visíveis, ao menos implicitamente, manifestações de alguma simpatia (ou, pelo menos, compassiva compreensão) para regimes obscurantistas que apenas a si devem o atraso e a mentalidade intoleravelmente doentia em que imergiram.
A pouco e pouco a globalização do sentimento será tomada pela privatização da dor. A vida regressará ao vaivém de um pêndulo de uma viagem onde o tempo sem mostrador se entrecruza com um espaço de vida minimal.
Que de toda esta tragédia humana possa sair o fortalecimento da justiça, da paz, do inconformismo perante o sofrimento, da salvaguarda de valores perenes e inegociáveis da civilização, entre os quais e acima de todos está o (mais) absoluto: o respeito pela Vida.
António Bagão Félix
Presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz
Comentários