Dar a outra face

João César das Neves
DN, 2001-10-01
A primeira guerra do milénio é um insólito conflito religioso que pode envolver o mundo numa escalada de absurdo e violência. Fanáticos ocultos ameaçam o progresso com terror, em nome de Deus. Acumulam-se forças militares avassaladoras contra um fantasma evaporado nas sombras. Multidões de miseráveis fogem aterrorizadas, com medo da resposta civilizada. Acusa-se o islão e o sionismo, a globalização injusta e o imperialismo americano, que desta vez é a vítima sangrenta. Mas a causa última é a luta pela cidade santa de Jerusalém. Sente-se o vento gelado de horríveis medos antigos.
O Ocidente rico e sofisticado está envolvido num processo que, no fundo, não entende. Boa parte vive o vazio ético do consumismo morno e das falácias filosóficas. Repudiada a raiz cultural cristã, a única que tem, está sem referências para opor ao fanatismo. Repete princípios abstractos de justiça, liberdade e progresso que de pouco servem, perante os cadáveres nos prédios e nas batalhas.
Mas a resposta da herança cristã, que tantos seguem, parece ainda menos adequada: "Se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a outra.
(...) Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem." (Mt., 5, 38 e 44.) Perante os escombros fumegantes de Nova Iorque, não será isto uma infâmia grotesca? Como amar e dar a outra face a gente desta? Terá ainda aplicação, no nosso tempo, para mais, em política internacional? Esta atitude pode vir de hipocrisia, ou cobardia política. Alguns mesquinhos dizem que, como desta vez as vítimas são ricas, a América, o país mais desprezado do planeta, deve perdoar. Mas nunca o diriam depois do massacre de Santa Cruz, em Timor, por exemplo. Dar a outra face, como a tolerância, é só para quando dá jeito.
Mas nada há de mesquinho neste mandamento. Após séculos de esquecimento, muita da cultura moderna não entende a grandeza e coragem dos princípios cristãos. Sobretudo deste, que confundiu e perturbou todas as épocas. A causa do repúdio que diante do televisor sentimos pela ideia de dar a outra face é a mesma que sentiram romanos e hunos: simples ignorância.
Só é possível compreender este preceito dentro da vida de Cristo e da sua Igreja, nos dois mil anos em que se esforçou para seguir este enorme desafio. Os que, hoje, no conforto do sofá, proferem juízos severos sobre essa história pouco mais sabem do que a visão positivista das Cruzadas e da Inquisição. E nem se dão conta de como esses momentos dolorosos, que realmente não compreendem, são pouco significativos em dois milénios. Sobretudo quando comparados com as miríades de santos que mostraram na prática o que significa dar a outra face.
A frase confronta o clássico dilema ético entre justiça e misericórdia. Deve castigar-se o mal e prevenir-se o sofrimento, mas a justiça estrita está próxima da maldade: "Se amais somente os que vos amam, que recompensa tereis? Não o fazem também os pecadores?" (Mt., 5, 46.) Ela não sugere uma apatia passiva, que é budista, e não cristã. Quem a disse também afirmou: "Envio-vos como ovelhas para o meio de lobos. Sede, pois, prudentes como serpentes e simples como pombas." (Mt., 10, 16.) Nem se trata do culto da dor, que é hinduísmo, não cristianismo. Ele também disse: "Não tenhais medo dos que matam o corpo, mas não podem matar a alma." (Mt., 10, 28.)
O verdadeiro significado diplomático de "dar a outra face" é fácil de entender, se lembrarmos um exemplo próximo. No final da Primeira Guerra Mundial, a atitude foi de justiça, com a dureza das "reparações de guerra" impostas aos vencidos. O resultado foram vinte anos de crise e nova guerra. Após a Segunda Guerra, a atitude foi de misericórdia. Decidiu-se ajudar os inimigos e até se deu a outra face, somando-se aos prejuízos da Guerra a despesa do Plano Marshall. O efeito foram décadas de paz e prosperidade.
A mudança foi surpreendente. Os valores dos líderes de Versalhes eram muito mais elaborados que o cinismo de Ialta. E teria sido muito mais fácil em 1918 do que em 1945 perdoar ao povo os erros dos seus dirigentes de guerra. Afinal, Hitler fora eleito democraticamente e gozara de um apoio entusiástico muito maior do que o Kaiser. Mas, mesmo improvável, a atitude de clemência e magnanimidade foi excelente.
Como então, o mundo civilizado tem de se defender e há que aplicar a justiça legal aos culpados do horror. É legítimo e urgente que os americanos e o mundo actuem. A acção parece ser mais de espiões e polícias do que de militares e bombas. A cooperação generosa com os países islâmicos será muito eficaz na erradicação prática do mal.
Acima de tudo, a civilização tem de parar a escalada da violência, que só interessa aos terroristas. É urgente substituir a fúria pela compaixão.
Amam-se os inimigos quando se olha para a face concreta do seu sofrimento. Quer no sangue americano inocente, nos seus sonhos e famílias destruídas, quer na angústia das crianças afegãs fugindo com fome e frio. Só oferece a outra face quem olha a dor nos olhos.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

OS JOVENS DE HOJE segundo Sócrates

Hino da Padroeira

O passeio de Santo António