A verdadeira guerra

João César das Neves
DN 20011015
A palavra "guerra" apareceu logo nos primeiros momentos após o atentado de 11 de Setembro. De facto, o número de vítimas, a dimensão da destruição e a crueldade do acto parecem episódios dessa mais horrível das actividades humanas. Mas, se se trata de uma guerra, os Estados Unidos e a civilização estão a perder.

Os danos causados pelos terroristas, que só no World Trade Center estão estimados pelas seguradoras acima de 30 mil milhões de dólares, são mais do dobro de todo o produto nacional do Afeganistão após anos de guerra civil. O número de vítimas ultrapassa o de muitas batalhas da história.

Comparando estes estragos feitos por 19 homens armados de navalhas com os sofisticados bombardeamentos americanos, vemos imediatamente que a vantagem está do lado dos terroristas.

Esta é a razão do medo gélido que traz todo o Ocidente refém. As ameaças de Ben Laden, a sua capacidade de destruição e impunidade, que desafia as tecnologias de armamento e espionagem do século XXI, são muito maiores que as de Saddam, Fidel, Kadhafi ou qualquer outro dos anteriores inimigos da civilização. Se voltar a atacar de surpresa uma cidade, pode arrasar muito mais que o exército americano, a maior força militar de sempre. Neste sentido, o mundo mudou a 11 de Setembro e começou um novo tipo de guerra.

Mas os termos em que se joga esse conflito são muito diferentes dos tradicionais. O atentado não constituiu uma batalha, em qualquer sentido da palavra. Pior que isso, ele escapou a todas as medidas de protecção. Quase não foram usadas as contas bancárias do terrorismo agora congeladas, nem pistolas detectáveis na segurança dos aeroportos. Identidades falsas anulam qualquer controlo. A simplicidade e singeleza do golpe arrepiam qualquer um: bastaram alguns homens dispostos a morrer.

A arma de Ben Laden, que derrota os mísseis americanos de um milhão de dólares cada, é uma das mais antigas do mundo: o fanatismo religioso. Isso significa que a verdadeira guerra se trava no campo espiritual. A origem do problema reside nas razões que levaram aquelas pessoas a largar amizades e sonhos, a esquecer família e projectos, para se oferecerem à morte. A longa e minuciosa preparação dos assassinos mostra que a explicação não está na loucura ou na barbaridade. O elemento central do novo conflito vem dos paroxismos de sofrimento e indignação capazes de causar actos destes.

Por isso, bombardear os talibãs, sendo um castigo justo, não resolve o problema e até pode agravar o fanatismo. O poder bélico da tecnologia americana exercido contra a miséria reforça o sentimento de irritação. Matar um terrorista faz surgir mil outros. Como tantos impérios aprenderam à sua custa, não se ganham as lutas contra mártires.

A única hipótese de vencer esta guerra reside numa única força: a teologia islâmica. É preciso que os líderes espirituais muçulmanos, e não apenas os seus dirigentes políticos, expliquem convictamente que estes métodos extremistas são opostos ao Corão. É urgente que as comunidades maometanas, e não apenas os países ocidentais, reneguem claramente os métodos de Ben Laden e a sua pretensão de representar a fé. Só assim o terror será eliminado, e não alimentado ao extremo. Isto é essencial para terminar a destruição do Ocidente. Mas, mais que isso, é indispensável para evitar o isolamento e a obsolescência da cultura islâmica.

Porque a questão de fundo que origina todo este fenómeno é a integração do Islão no processo de desenvolvimento. As dolorosas transformações que o Ocidente conhece há trezentos anos vêm-se espalhando, entretanto, pelas diferentes regiões do mundo. Um pouco por todo o lado se vivem as profundas modificações culturais, sociais e espirituais que traz a incrível dinâmica técnico-económica em que a humanidade entrou desde a Revolução Industrial.

Nos últimos séculos, muitas foram as instituições e hábitos que desapareceram ou se modificaram para sempre debaixo da pressão do progresso. A vassalagem e o colonialismo, o almocreve e a desfolhada, o telégrafo e a lamparina são realidades do passado enterradas pelo desenvolvimento. O trabalho, a família, a política e os tempos livres são hoje muito diferentes de há cem anos. A vida e cultura mundiais evoluíram incrivelmente e continuam a transformar-se.

O mundo muçulmano, uma das culturas mais ricas e flexíveis da história, sofre essa evolução já há umas décadas. Múltiplas comunidades, da Europa à Indonésia, mostram bem como é possível e praticável a conciliação entre o Corão e o progresso. Mas o fanatismo revela bem a dimensão do desafio. A verdadeira guerra que se está a travar, por cima dos cadáveres americanos e afegãos, é a da entrada do Islão para o mundo moderno. Os terroristas apostam no tradicionalismo e caem no obscurantismo e no horror da mais infame destruição. A palavra final, porém, cabe ao fiel muçulmano comum e à sua aposta no futuro de um Islão moderno e dinâmico.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

OS JOVENS DE HOJE segundo Sócrates

Hino da Padroeira

O passeio de Santo António