Venezuela: entre o desfecho sangrento ou democrático


  • P. Francisco José Virtuoso, sj            OBSERVADOR        1.2.2019

A situação da Venezuela explicada pelo Reitor da Universidade Católica Andrés Bello, de Caracas, que traça os cenários para a saída da crise, antevendo que ainda ocorram momentos de grande violência.

Texto originalmente publicado pelo portal dos jesuítas em Portugal, Ponto SJ

A 23 de janeiro o conflito da Venezuela entrou numa fase final. As tensões sociais foram-se agravando ao longo de 2018. Esse ano terminou numa situação de colapso e destruição estrutural da sociedade e do Estado, da sua economia e das condições básicas de acesso a bens e serviços essenciais.

2018: ano de sofrimento e opressão para o povo venezuelano

No final de 2018, a taxa de inflação alcançou um número inimaginável: 1.700.000% (um milhão e setecentos mil por cento), quinhentas vezes maior do que a taxa registada em 2017, que já era exageradamente elevada (2.586 %). O Inquérito às Condições de Vida (UCAB, 2018) revela que a percentagem de lares pobres na Venezuela (tendo como indicador o padrão de vida: condições da habitação, acesso a serviços básicos, educação, tipo de emprego e proteção social) situou-se nos 48%. Analisando separadamente o indicador do rendimento familiar, 94% dos inquiridos garante que o seu rendimento é insuficiente para  fazer face ao custo de vida. Diante do estrangulamento das condições de vida, a Venezuela assiste a uma migração massiva da sua população; segundo o ACNUR mais de 3 milhões de pessoas deixaram o país desde 2017.
Esta situação dramática é uma consequência direta das políticas públicas implementadas pelo governo entre 2013 e 2018. Os inquéritos demonstram claramente que a população venezuelana está cada vez mais consciente das origens da crise, o que é demonstrado pela perda de apoio e popularidade do governo. Desde 2017 que o governo decidiu implementar um regime de hegemonia autoritária para silenciar o descontentamento, violando abertamente a ordem constitucional, restringindo as liberdades cívicas, sociais e políticas e violando os direitos humanos de maneira generalizada e sistemática. Consequentemente, perdeu a sua legitimidade, escudando-se apenas no apoio da força para assegurar o poder e o controlo do Estado.
O colapso institucional teve lugar a 20 de maio. Nesse momento, o regime decidiu convocar eleições presidenciais. Fê-lo de forma totalmente inconstitucional, apoiando-se no mandato de uma Assembleia Nacional Constituinte fraudulenta, convocada e eleita um ano antes à margem do que define a Constituição Nacional. As eleições realizaram-se violando os princípios internacionais comummente aceites e a lei venezuelana

A intenção de perpetuar a tragédia e a rebelião como resposta

Esses resultados não foram reconhecidos nem pela Assembleia Nacional da República da Venezuela, nem pela grande maioria do povo venezuelano e tão pouco por uma parte significativa da comunidade internacional. No entanto, o até então Presidente Nicolás Maduro fez o juramento para um novo mandato (2019-2025) no passado dia 10 de janeiro
A Assembleia Nacional, liderada pelo seu Presidente, o deputado Juan Guaidó, não reconheceu esse juramento, declarando que a Presidência da República foi usurpada. Apoiando-se nos artigos 233, 333 e 350 da Constituição Venezuelana decide que, diante da ausência de um Presidente constitucionalmente legítimo e da sua pretensão de usurpar o Poder Executivo, compete à Assembleia Nacional, assumir interinamente a Presidência da República, na pessoa do seu Presidente e convocar eleições livres, constitucionalmente sustentadas e  sob  vigilância internacional. A Assembleia Nacional é o único Poder legitimamente eleito representando, neste contexto, a soberania popular.
Contudo, para que esta resolução fosse efetiva esperou-se pelo dia 23 de janeiro. Esta data é muito especial para a Venezuela uma vez que assinala a queda da ditadura que governou o país durante dez anos (1948-1958) e a instauração da democracia que, com dificuldades, sobreviveu até 2017.
No passado dia 23 de janeiro de 2019, o povo venezuelano manifestou-se massivamente rejeitando a ditadura de Nicolás Maduro. Em mais de 60 cidades do país e muitas outras a nível internacional, houve uma ampla participação como resposta ao apelo, feito a 12 de janeiro, pela Assembleia Nacional, para expressar descontentamento numa data tão marcante da história venezuelana. Antes das manifestações realizaram-se, em diferentes estados, reuniões camarárias abertas que também tiveram uma participação massiva.
Nesta mobilização, importa destacar a ampla participação de habitantes provenientes das zonas mais populares. Os mesmos que protagonizaram os protestos exigindo serviços públicos e melhorias nas suas comunidades, ao longo de 2018. No caso de Caracas foram as comunidades situadas em antigos bastiões chavistas que protagonizaram desde o dia 21 de janeiro as manifestações noturnas anti Maduro.
Contrastando com esta situação, o governo pediu uma forte mobilização mas teve como resposta uma modesta participação de simpatizantes. Convocou também uma vigília noturna junto ao Palácio de Miraflores para “defender Maduro”, sem que a população respondesse à sua chamada
A mobilização cívica convocada pela Asambleia Nacional apoiou abertamente o caminho traçado para rejeitar o governo, realizar a transição, restaurar a plena vigência da Constituição e convocar eleições. É neste contexto que o Presidente da Assembleia Nacional, Juan Guaidó, se declara como Presidente da República Bolivariana da Venezuela.
O regime de Nicolás Maduro ignorou o clamor popular pedindo a sua renúncia, respondendo com o anúncio do corte de relações diplomáticas com os EUA, ordenando a saída dos diplomatas em 72 horas. No dia seguinte, o Alto Comando Militar e os demais representantes dos poderes públicos, que não a Assembleia Nacional, expressaram o seu apoio ao governo.
Um fato que não pode passar despercebido são as denúncias que as organizações de Direitos Humanos têm feito. Há 29 casos documentados de pessoas mortas nos protestos entre os dias 22 e 24 de janeiro. As incursões contra áreas populares foram acompanhadas por ataques sem mandato, ataques a casas, detenções arbitrárias e maus-tratos a detidos que, segundo alguns registos, somam várias centenas de pessoas.
Neste sentido, indica a PROVEA (organização que defende os direitos humanos na Venezuela):
Os assassinatos perpetrados pelas forças policiais e militares ou por grupos paramilitares ao serviço do Governo ampliam o processo que tramita no Tribunal Penal Internacional na fase de Exame Preliminar, reiterando que tanto os mandantes como os executores das ordens são responsáveis por crimes contra a humanidade. Infelizmente, tanto o Ministério Público como o Gabinete do Provedor de Justiça garantem atualmente a impunidade dos perpetradores.”

Duas clarificações necessárias

Existem dois fatores que estão presentes na discussão internacional sobre a Venezuela. O primeiro está relacionado com o protagonismo dos EUA na situação venezuelana. O conflito venezuelano transformou-se numa questão internacional, tendo que ser entendido à luz da geopolítica mundial e do conflito de interesses que aí se desenham. Ultrapassou também a geopolítica da região latino-americana. Devido ao regime que a domina a Venezuela transformou-se numa ameaça à paz, à estabilidade regional e aos interesses americanos.
Na atual conjuntura, a grande intuição de quem lidera a oposição e define a sua estratégia política foi a de alinhar todos esses interesses com o desejo de uma mudança política em direção à democrática. Maduro, por seu lado, alinhou os interesses da Rússia, China, Turquia, entre outros, com o desejo da manutenção da ditadura.
O apoio dos EUA  a favor do regresso à democracia, permitiu a mobilização em massa  do povo venezuelano e deu força à Assembleia Nacional e ao seu Presidente para se tornar num verdadeiro fator de pressão para o governo, transformando-se  numa ameaça credível.
Outro fator a ter em conta é que os EUA não estão sozinhos. Estão aliados com a União Europeia, Inglaterra, Japão, Canadá e 16 Estados da América Latina, entre outros países. Uma aliança tão diversa é importante, porque funciona como  equilíbrio e contrapeso  às políticas dos EUA, num contexto multilateral.
Por outro lado, os EUA têm vários meios para materializar a sua pressão sem recorrer a uma intervenção militar. Medidas que podem ser tão letais quanto uma intervenção: sanções comerciais, embargo de bens, etc. Ora isto, no meio da crise económica que o país atravessa, é fatal para o regime.
Por todas estas razões, sou dos que acredita, juntamente com muitos outros, que o apoio dos Estados Unidos é atualmente um ativo da mais alta importância estratégica para a luta pela democracia na Venezuela, sem que isso implique colocar em risco a nossa soberania. Mas há ainda muito jogo político a fazer para lá chegar.
Outra questão que tem originado debate é o fato de alguns meios de comunicação internacionais se referirem à  “autoproclamação de Guaidó como Presidente da república” sem que tivesse havido eleições.  O governo de facto e o alto comando das forças armadas denominaram este ato como uma “golpada descarada”, semelhante ao que aconteceu com a autoproclamação feita pelo Pedro Carmona Estanga em 2002, quando, após um  golpe militar, se proclamou Presidente em exercício.
Ora, por um lado, como referi anteriormente, Guaidó atua como Presidente da Assembleia Nacional, a única instituição pública que representa legitimamente de forma constitucional o povo venezuelano, na ausência de um presidente legitimamente eleito. Além disso, conta com o apoio popular manifestado nas ruas.
Por outro lado, a resposta a dar ao governo de facto é óbvia. Não houve eleições legítimas na Venezuela, portanto não há presidente eleito.

Cenários possíveis

Parece-me que é necessário ter em conta diversos aspetos para que nos possamos aventurar a traçar cenários.
  • Este “jogo” está a ser jogado em diferentes tabuleiros. O conflito venezuelano deixou de ser exclusivo da Venezuela para se converter num conflito internacional, onde a geopolítica mundial e os seus problemas entraram em cena, num contexto que não é o da Guerra Fria, num contexto multipolar e globalizado. Há atores internacionais e regionais alinhados para exercer pressão com vista ao regresso da democracia recorrendo a todos os meios possíveis.
  • Na Venezuela, a exigência do «cesse a usurpação» na Presidência por parte de Nicolás Maduro, a instauração de um governo de transição que garanta o regresso à constitucionalidade, atenda à emergência humanitária e convoque eleições livres e transparentes é uma estratégia que conta com o apoio maioritário do povo venezuelano, apoio que se traduz na disposição para se mobilizar ativamente com o objetivo de alcançar este objetivo.
  • Na realidade, o governo não aceita os factos. A sua resposta consiste em entrincheirar-se, manter a coesão interna, o apoio das Forças Armadas e o apoio de algumas potências internacionais, como a Rússia ou a China, e de alguns países da região com os quais tem mantido diversas alianças.
  • A oposição política tem um plano, uma liderança clara, o apoio popular, conta com uma articulação internacional concertada.
  • Tudo parece indicar que o mais provável é Nicolás Maduro abandonar a presidência da Venezuela; o problema reside no modo como acontecerá esta saída e se se assentam definitivamente as bases para uma transição estável que permita efetivamente deixar para trás a tragédia que nos aflige.
Tendo em conta estas premissas, antevejo apenas dois cenários possíveis:
1) O Governo de Maduro resiste à pressão popular e internacional até ao limite máximo
Este cenário é o mais previsível, valendo-se, para tal, de forte repressão junto dos meios de comunicação, das organizações sociais e políticas, da Assembleia Nacional, etc., bem como de iniciativas de mobilização e protestos da sociedade civil. Tentará consolidar as suas alianças internacionais, especialmente com a Rússia, e regionais, com Cuba e seus aliados. Dará continuidade ao sistema de distribuição clientelar de benefícios, especialmente no que diz respeito aos alimentos, enquanto as divisas o possibilitarem.
Em oposição a Maduro, tornar-se-á mais firme a pressão internacional, tanto ao nível diplomático como através de sanções económicas com o intuito de asfixiar o governo. Tal estratégia repercutir-se-á na escalada do empobrecimento da população, com o consequente aumento dos protestos populares. Num contexto  em que abundam a proliferação de armas e de grupos criminosos, é previsível um aumento de violência sem lei e anárquica provocada por grupos criminosos.
No seio das tensões que irão gerar-se, são previsíveis diversas formas de intervenção militar estrangeira.
2) O Governo de Maduro aceita iniciar um cenário de negociações e acordos com o objetivo de convocar eleições.
Este cenário supõe um processo de negociação e só se chegará até ele se for possível a articulação de diversas pressões (entre outras coisas, provocando uma profunda divisão na cúpula que detém o poder), tornando impossível a permanência na Presidência. Maduro, prevendo essa situação, procura negociar uma saída que garanta a proteção da sua vida e a da sua liberdade, bem como dos seus aliados.
É neste contexto, que poderia efetivar-se a trilogia proposta por Guaidó: cessação da usurpação, governo de transição e eleições livres.
Em ambos os cenários, espera-nos, aos venezuelanos, um processo traumático e difícil, marcado por diversas  formas de violência. Provavelmente, aumentará o sofrimento do nosso povo, porque se agravará, entre outras coisas, a situação económica e social.

Reflexão final

Nesta dura luta, sou testemunha da firmeza e da convicção de muitas pessoas e grupos e base, de muitas igrejas locais, de organizações não-governamentais, de instituições, etc., que estão a dar o melhor de si, com honradez, compromisso e sacrifício, para que o nosso povo possa alcançar a sua libertação. Os bispos da Igreja Católica têm-se comportando como autênticos pastores. A fé simples, pequena como um grão de mostarda, continua a ser um alento para que muitos homens e mulheres desta terra continuem a lutar e a esperar dia a dia. A esperança está aí, em muitos corações. Seguiremos em frente.

Caracas, 27 de janeiro de 2018

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