SNS… a história da verdade
António Costa disse há dias que na origem do Serviço Nacional de Saúde (SNS) esteve apenas e só o PS. Dizia o primeiro-ministro, quando se discutia a Lei de Bases da Saúde, que era fundamental que a mesma fosse aprovada, não por uma maioria qualquer, mas pela maioria que – segundo António Costa – criou, apoiou, defendeu e desenvolveu o SNS.
Como a imprecisão histórica destas declarações é tão evidente, convém reavivar as memórias para que não se tente reescrever a história. A opinião faz-se sustentada na realidade dos factos e assim deve ser sempre. Não se deve deixar que seja feita opinião sem qualquer análise prévia e sem que se faça a devida contextualização.
O socialista António Arnaut, que esteve seis meses num Governo (janeiro a agosto de 1978), fez o despacho que consagrou o direito ao acesso à rede das Caixas e à universalidade do acesso à Saúde, redigindo também a lei do SNS, que só viria a ser publicada em setembro de 79, já noutro governo, o de Maria de Lurdes Pintassilgo.
Mas para erguer um SNS não basta apenas escrever um lindo texto ou até publicar um qualquer decreto-lei genérico. Para erguer um SNS é preciso criar carreiras, contratar recursos humanos, criar hospitais e centros de saúde, ter equipamentos funcionais e apetrechados, é ter tudo isto a funcionar em pleno, ao serviço das pessoas, garantindo o seu financiamento e sustentabilidade.
O Governo de Lurdes Pintassilgo terminou dois meses depois da aprovação da Lei do SNS e nesses dois meses nada aconteceu. Seguem-se 15 anos com o PSD no poder (1980 a 1995), com um pequeno intervalo de apenas dois anos, com o PS a governar (1983 a 1985).
Foi neste período de 15 anos que o SNS se ergueu efetivamente. Ergueu-se no plano jurídico; ergueu-se no terreno com meios e infraestruturas; e ergueu-se garantindo o real acesso das populações aos cuidados de saúde.
Neste período instituíram-se os Cuidados de Saúde Primários. Recorde-se a Portaria n.º 444-A/80, que regulamenta a carreira de Generalista consagrada ao “exercício das funções de Clínica Geral”.
Recorde-se o decreto-lei 310/82, que vem regulamentar as carreiras médicas e passa a definir o perfil profissional do Médico de Clínica Geral.
Nesse mesmo ano, pelo decreto-lei 254/82, são criadas as Administrações Regionais de Saúde com o objetivo de promover planos de ação, orientar, coordenar e acompanhar a gestão do SNS, ao nível regional.
Em 1990, através do decreto-lei 73, a especialidade de Medicina Geral e Familiar é oficialmente reconhecida em Portugal.
O célebre decreto-lei 73/90, das carreiras médicas, acordadas com os sindicatos médicos, pacifica o setor e cria as 42 horas com exclusividade, que foi fator determinante para fixar os médicos no SNS.
1990 viu ainda ser publicada a Lei de Bases da Saúde, Lei 48/90. Mais tarde, em 1993, foi publicado o decreto-lei 11/93, que define o Estatuto do Serviço Nacional de Saúde.
Portanto, nestes 15 anos foi montada toda a rede de Cuidados de Saúde Primários, alargada a rede hospitalar e feita a articulação entre os Cuidados de Saúde Primários e Secundários e refeitas as carreiras médicas, tendo sido criada a carreira de Medicina Geral e Familiar.
Em finais de 1979 não se podia afirmar que havia um SNS. Já em 1995 sim, podia afirmar-se que o SNS era uma realidade em Portugal.
Para que a demagogia não apague a história e para que as novas gerações não esqueçam o legado que lhes foi garantido, importa deixar claro quem, realmente, ergueu o SNS. Não se deve retirar o mérito a quem pensou o texto legislativo, mas foi apenas isso, pois a construção dessa realidade não teve certamente os méritos do mesmo protagonista.
Portugal tem de dispensar a propaganda barata, as ilusões que a própria história desmascara após um pouco de investigação. Quando no discurso político impera a demagogia, o eleitoralismo e a escravatura do “sound bite”, não há sistema de Saúde que nos valha.
Como dizia Abraham Lincoln, “A demagogia é a capacidade de vestir as ideias menores com palavras maiores”, e nisso os atuais governantes parecem ser mestres.
Importa às sociedades contemporâneas rejeitar os governos que com presunção e arrogância agem, como referia o escritor americano Harry Browne, “partindo as pernas ao seu povo para de seguida lhes dar uma muleta e afirmar: sem nós, o nosso povo jamais andaria”.
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