"Uma pessoa pode ter o direito de querer morrer. Mas não pode ter o direito de pedir que a matem"

VISÃO    16.04.2017

Urologista do Hospital de São João, no Porto, 55 anos, Miguel Guimarães tornou-se, em janeiro, bastonário da Ordem dos Médicos. Tal como um dos seus rivais nas eleições, o socialista Álvaro Beleza, foi um dos fundadores da Associação Nacional de Jovens Médicos. No seu caso, garante, no entanto, que nunca teve qualquer ligação à política
Quem é hoje a classe que representa?
Estão inscritos na Ordem cerca de 50 mil médicos, mas uns emigraram e outros reformaram-se. Em Portugal e no ativo haverá uns 45 mil. Destes cerca de 27 mil estão no Serviço Nacional de Saúde (SNS), incluindo uns 9 mil ainda em formação. Os outros ou estão reformados ou a trabalhar no setor privado em exclusividade, o que já é o caso de 12 mil médicos. É uma classe que tem feito muito bom trabalho, pois em grande parte a ela se deve que o SNS seja o melhor serviço público e que, mesmo internacionalmente, esteja no topo nalguns indicadores, como a saúde materno-infantil. No entanto, hoje o SNS está a cair por dificuldades várias, sobretudo a do capital humano.
Tem falta de médicos?
De médicos, de enfermeiros e de técnicos. O excesso de trabalho é mau para os profissionais e para os doentes.
Por isso Portugal está na cauda da Europa relativamente à qualidade de vida depois dos 65 anos. E temos uma grande carga de doenças crónicas, como a diabetes. Os médicos de família têm excesso de doentes e uma série de tarefas burocráticas que lhes rouba imenso tempo. Uma das minhas bandeiras é revalorizar a relação médico/doente.
Mas, de um modo geral, tem-se entendido que há médicos a mais.
A falta é um problema do Serviço Nacional de Saúde (SNS). E a promoção da saúde não se faz a nível do setor privado, que se foca mais na doença aguda. Tem de ser um desígnio do Estado.
Disse que iria dar mais atenção à medicina privada. Referia-se a quê?
Vou ser o bastonário de todos os médicos. E há cada vez mais a trabalhar no privado, em exclusividade ou não. A Ordem tem de exigir as mesmas condições nos dois setores, seja no exercício profissional, seja na forma como são tratados pelas instituições. Os médicos têm de sentir que a Ordem se preocupa com eles e com a qualidade da medicina que está a ser feita. Não podemos deixar o setor privado em roda livre.
Os médicos trabalham no privado sem as mesmas condições que no público?
O setor privado centrava-se numa medicina de proximidade, em consultórios e pequenas clínicas. Era uma profissão liberal e que resolvia até alguns problemas em zonas mais periféricas, onde o setor público tinha dificuldades. Este paradigma alterou-se por ação do Estado, quando começaram a ser exigidas, sobretudo aos pequenos consultórios, condições que os tornavam até difíceis de manter. E foram surgindo os grandes grupos económicos, que dominam hoje praticamente o mercado privado da saúde. A Ordem tem de defender tanto quem trabalha nos consultórios como na grande medicina privada. E os médicos devem saber que podem recusar certas situações, se forem eventualmente pressionados.
Em princípio, a Entidade Reguladora da Saúde (ERS) controla toda a medicina, pública e privada. Que balanço fez da sua atuação?
A ERS, que existe há muitos anos, não mostrou ser competente para a missão. É uma entidade que está em excesso. Gasta dinheiro, apesar de apresentar um lucro extraordinário, 19 milhões de euros, segundo o Tribunal de Contas (TC). Para além de fazer uns estudos cujos objetivos não se percebem bem, está a cobrar taxas a mais, seja a profissionais individualmente, seja a instituições.
Daí o receio do TC de que também os doentes acabem a pagar mais. Este relatório devia obrigatoriamente levar a uma intervenção do Estado. Como presidente do Conselho Regional do Norte, escrevi várias à vezes à ERS a denunciar situações. Mas não o farei mais.
Porquê?
Denunciei, por exemplo, o caso de Vila Real, por a população daquele distrito não ter, nem de perto nem de longe, o mesmo acesso aos cuidados de saúde que outros. Nem me responderam.
Acho inaceitável que a ERS faça as maiores exigências a um pequeno consultório e não exija o mesmo ao setor público. Tem de haver equidade.
O ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes, diz que desde 2016 o SNS está mais sustentável.
Mas não está. Vai é oferecendo cada vez menos serviços. A fatia do Orçamento do Estado para a Saúde não aumentou, está aquém de 6% do PIB. O antecessor, Paulo Macedo, quis baixar a despesa ao máximo, o que no custo dos medicamentos até teve um efeito positivo, mas não permitiu fazer as reformas de que o SNS precisava. Uma das pessoas que criticava, e bem, essa opção era o atual ministro. Mas com ele as grandes reformas também ainda não foram feitas.
O SNS está a perder características como a equidade de acesso. E os utilizadores do privado são cada vez mais, embora as pessoas com seguro paguem 35 a 40% do seu bolso, um dos valores mais altos da Europa. Dentro do SNS ainda há a ADSE, que cobre mais de um milhão e 200 mil pessoas e é, assim, um sistema que o Governo nunca deixará acabar.
Diz isso porquê?
Não acabaria com ela mesmo que tivesse de a financiar, o que já não sucede há dois anos. É paga pelos utentes e passou até a dar lucro. Mas, mesmo quando dava prejuízo, se o Estado lá pusesse 400 mil euros, ainda era lucro. Mais de 50% dos utentes da ADSE recorrem ao privado. Se não fosse assim, o sistema público não teria capacidade. A ADSE funciona como uma almofada do SNS.
Já disse que este ministro ainda não fez grandes reformas. Mas, no geral, que balanço faz da sua atividade?
Leva ainda pouco tempo no cargo. Mas tem uma característica positiva, que é um discurso fácil, fala bem. E quando se refere ao SNS, centra-se sempre em questões importantes, como dar mais apoio aos doentes ou valorizar os profissionais de saúde. Daí que criasse esperança nas reformas. Veja-se o caso das urgências.
É um problema que ameaça eternizar-se.
E que todos sabem como resolver, incluindo desenvolver os cuidados de saúde primários, abrir alguns centros de saúde até mais tarde ou criar um programa de educação para a saúde.
Mas há também que alterar especificamente o serviço de urgência, hoje muito dependente das empresas de prestação de serviços.
As agências que contratam médicos?
Sim, que contratam médicos à hora, o que é dar um péssimo serviço ao País.
A urgência é um serviço altamente diferenciado. Nos grandes hospitais ainda é feita por um misto de contratados e médicos do próprio hospital. Os outros estão totalmente dependentes dos contratados, que umas vezes terão qualidade e outras não se sabe. Tem de haver equipas com pessoas que façam preferencialmente urgências, sobretudo nas polivalentes e nas médico-cirúrgicas.
Mas sai mais barato ao Governo enfrentar a Comunicação Social quando diz mal das urgências, do que fazer o investimento.
Tem uma estimativa de quanto mais precisaria o SNS?
O que temos dito ao ministro e também ao Presidente da República é que o setor necessitaria do mesmo que a média dos países da OCDE, isto é, 6,5% do PIB, o que daria mais cerca de 1400 milhões de euros. Não resolveria ainda tudo, mas seria um início.
Acusa o Governo de não estancar a saída de jovens médicos. Haveria aqui vagas para todos?
Só nos últimos três a quatro anos emigraram mais de 3 mil médicos, um valor muito superior ao dos últimos 50 anos. E, no caso dos jovens, a situação é crítica. Raramente falo no dinheiro, porque o mais importante é o esforço deles e das famílias. Mas um estudo de Constantino Sakellarides (ex-diretor-geral da Saúde), mostra que um aluno de medicina custou ao Estado, no final do curso, 60 a 100 mil euros, consoante a faculdade. A isso ainda se somam os gastos com o internato comum e o da especialidade. Há quem calcule que formar um médico custa 250 mil euros.
Em 2016 foram contratados mais médicos para o interior, ao que diz o ministro.
Todos os anos os ministros dizem que contratam 2 mil e tal médicos, mas os internos não podem entrar nessa conta, porque o ano comum (internato) é obrigatório quando acabam o curso.
São pessoas que ainda estão a aprender, nem têm autonomia para exercer medicina. E depois ainda há os internos das especialidades.
Mas há ou não lugar para todos os que as faculdades formam?
Neste momento formam, de facto, mais do que o País tem necessidade.
Então qual é a alternativa?
Estamos a precisar de mais médicos para o SNS, mas a maior parte desses jovens não é contratada. Por isso, vão para fora. E para os que ficam o setor privado ainda é muito concorrencial, pois pode pagar três ou quatro vezes mais. Mesmo que o ministro diga que em 2016 sairão menos, ainda não conhecemos a taxa de emigração. É a Ordem que faz essa contabilidade, que ainda não terminou. Os pedidos dos certificados que permitem emigrar aumentaram em 2016. Nós contactamos cada um desses médicos para saber se sempre foi, e estamos a concluir esse processo.
Continua a defender um tempo mínimo para consultas?
Sim. Vou pedir aos Colégios das Especialidades que definam o tempo-padrão para cada área. Dentro de seis meses conto ter o trabalho pronto e deve ser aplicado quer no setor público quer no privado.
Vem aí o debate sobre a eutanásia.
Um debate precoce.
Precoce porquê?
O direito à saúde é o mais próximo do direito à dignidade. E hoje não há equidade no acesso à saúde. É lamentável que os políticos esqueçam isto e que não vão, por exemplo, fazer visitas aos hospitais sem avisar. Além disso, é sabido que a rede de cuidados paliativos é insuficiente e que pouco se fala no testamento vital. Só havia 20 mil até agora, mas nos últimos meses falei nisso e surgiram logo mais mil. E vamos combater a distanásia (continuar a terapêutica quando já não é possível tratar), que é proibida no nosso Código Deontológico, tal como a eutanásia. Para o médico saber quando deve parar, precisa de formação.
E tem de se explicar à sociedade que há ali uma linha a não ultrapassar.
Mesmo assim permanecerá a questão da eutanásia.
Dependerá muito dessa linha, de quando deve parar-se o tratamento.
Um tetraplégico que pede eutanásia, por exemplo, é uma situação diferente.
Mas há eutanásia e eutanásia. Os partidos começaram com muita força. É ver o manifesto que foi assinado por 100 personalidades, entre as quais alguns amigos meus. Todas as pessoas deviam lê-lo com atenção e refletir. Como lá está, é eutanásia sem limites. Se uma mulher de 30 anos, sem qualquer doença, disser que quer morrer e um, dois ou mesmo dez psiquiatras concluírem que ela deseja mesmo isso, então mate-se.
É essa a conclusão a tirar?
Desculpe, mas é o problema que se coloca hoje na Bélgica. Houve alguém que praticou eutanásia a uma rapariga de 27 anos por um problema psíquico. Uma pessoa com uma depressão não está em condições de decidir.
Mas a avaliação psicológica não é para impedir isso mesmo?
A pessoa invoca o último recurso ou, como diz João Semedo (deputado do BE), o seu direito a morrer. Numa situação terrível isso pode até ser compreensível.
Percebo as pessoas que defendem a eutanásia, sobretudo as que colocam regras. Mas também é preciso respeitar o direito de quem vai ter de matar.
O médico não se sente confortável. Uma pessoa pode ter o direito a querer morrer, mas não pode ter o direito a pedir que a matem. São direitos diferentes.
Pegando nas palavras de Marques Mendes (ex-líder do PSD), seria bom um Livro Branco sobre a eutanásia, para sabermos quantos casos houve lá fora e quem eram essas pessoas. E há muito poucos países com eutanásia.
É um assunto tão polémico que exige um amplo debate na sociedade. E só deve ser decidida pelo povo português.
Propõe então um referendo?
Nenhum partido incluiu a eutanásia no programa eleitoral. O que o BE propunha para a saúde era o aumento do financiamento para 8,5% do PIB. Deveria era estar a defender isso. Portanto, a decisão só fará sentido se for tomada em referendo. Sei que isso não irá acontecer, mas é o que defendo.
Se, em referendo ou não, a eutanásia for aprovada, será objetor de consciência?
Serei, sim.
E enquanto bastonário o que fará?
A Ordem não fará nada de especial. Aliás, nem me tenho envolvido no debate, para não influenciar. Mas o Código Deontológico terá de ser alterado, para que os médicos que aceitem a eutanásia não sejam penalizados. Porque vão ter de ser os médicos a praticá-la, embora não conheça qualquer tratado onde conste que matar seja uma função dos médicos.

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