Aquela Páscoa judia, tão diferente...


 JOSÉ MARIA C. S. ANDRÉ   25.03.2018  

Correio dos Açores, Verdadeiro Olhar, ABC Portuguese Canadian Newspaper, Spe Deus, Clarim, O Alcoa, Notícias da Covilhã, O Progresso, 25-III- 2018


Durante a Semana Santa, que começa hoje, a liturgia católica leva-nos a viver uma Páscoa
judaica surpreendente. Recordo a perplexidade de Scott Hahn, hoje um grande biblista
católico, no tempo em que ele ainda era protestante. Um dia, ao fio dos Evangelhos, o
pregador da sua comunidade protestante foi seguindo os passos da Última Ceia, conforme o
cânone habitual da Páscoa judaica. Até dada altura, tudo decorria da forma habitual, ainda
que num clima de extraordinária intensidade.
A minúcia dos preparativos, da sala e da celebração, anunciava algo especial e Cristo
começou por alertar os discípulos para a importância do momento: «Desejei ardentemente comer esta Páscoa convosco, antes de padecer».
A celebração judaica começa com as abluções rituais. O mais novo da família leva uma jarra
e uma bandeja, deitando a água da purificação sobre as pontas dos dedos de cada um. Neste
caso, não foi o menos importante – foi o próprio Cristo! – Quem fez a ablução. E não
derramou água sobre os dedos: pôs uma toalha à cintura e lavou os pés a cada um dos
discípulos. Pedro recusa uma coisa dessas! Depois, é tal a insistência de Cristo, que aceita...
Seguiram-se os salmos do costume e vários cálices rituais, em acção de graças, como símbolo
da Aliança do Povo com Deus, etc., até que Cristo altera o sentido de tudo ao estabelecer uma
Aliança nova: «Este cálice é a nova Aliança no meu Sangue, derramado por vós». Neste
momento, Cristo coloca-Se a Si próprio como novo centro da acção litúrgica: «todas as vezes
que o beberdes, fazei isto em memória de Mim».
Há outros elementos revolucionários naquela celebração pascal, mas o que mais surpreendeu
Scott Hahn e a sua congregação protestante foi que, imediatamente antes do momento
culminante, que seria o cálice da Consumação, Cristo interrompe a cerimónia. Não só
interrompe, como o declara solenemente, como se fizesse de propósito: «não tornarei a beber
o fruto da videira, até àquele dia em que o beberei de novo no Reino de Deus». Levantaram-
se, pois, e saíram para o Monte das Oliveiras. A comunidade de Scott Hahn não sabia o que
pensar. Talvez Jesus estivesse perturbado pela iminência da morte, talvez se tivesse
esquecido de concluir a cerimónia da Páscoa...
Hahn decidiu reler os Evangelhos de uma ponta à outra, à procura do cálice que faltava, o
cálice da Consumação. A conclusão imediata é que não tinha havido esquecimento, quase se
diria que Jesus não pensava noutra coisa. Jesus sai do cenáculo da Última Ceia a falar do
cálice que faltava: «Meu Pai, se é possível, passe de Mim este cálice! Mas não se faça a
minha vontade mas a tua». «Pai, se este cálice não pode passar sem que Eu o beba, faça-se a
tua vontade!...». Chegam Judas e os soldados, Pedro pega numa espada e corta a orelha de
Malco, um criado do Sumo Sacerdote. Jesus cura milagrosamente o ferido e diz a Pedro
«Mete a tua espada na bainha. Eu não havia de beber o cálice que o Pai Me deu?».
Aquele cálice, vinha inclusivamente de muito antes. Ao pedido da mãe de Tiago e João,
responde com um desafio misterioso: «Podeis beber o cálice que Eu hei-de beber, ou ser
baptizados no baptismo com que Eu vou ser baptizado?» – qual cálice, tão singular? Qual
baptismo, se Jesus já tinha sido baptizado no Jordão?
No final da Paixão, pendurado da Cruz, momentos antes de morrer, ressurge a referência à
consumação da Aliança. «Sabendo Jesus que tudo estava consumado, para se cumprir a
Escritura, disse “tenho sede”. Havia ali um vaso de vinagre...» e um dos que estavam ali

«correu a tomar uma esponja, ensopou-a, pô-la sobre uma cana e deu-Lhe de beber»...
«Deram-Lhe a beber vinho misturado com fel. Tendo-o provado, não quis beber». Não,
aquele vinho misturado com fel não era o cálice esperado; aquele «tenho sede» não era a
pedir aquele vinho. Imediatamente a seguir, Jesus exclama «Tudo está consumado!» e,
inclinando a cabeça, expirou.
De repente, Scott Hahn percebeu que a Última Ceia só terminava no Calvário, no momento
em que se estabelece a nova Aliança «no sangue derramado por Cristo». A Última Ceia é
uma unidade com todo o oferecimento de Cristo na Paixão. Participar na Missa é participar
no Sacrifício de Cristo na Cruz. Como diz S. Paulo aos de Corinto, «porventura o cálice de
bênção que abençoamos não é comunhão com o sangue de Cristo?». Cristo é, como diz S.
Paulo a seguir, «a vítima imolada no altar». S. Paulo recorda como o próprio Jesus tinha
avisado os discípulos, na Última Ceia, de que aquele vinho consagrado apontava para a sua
morte no Calvário: «Todas as vezes que comerdes deste pão e beberdes deste cálice,
anunciareis a morte do Senhor, até que Ele venha».
Um dia, na universidade protestante em que dava aulas, Scott Hahn apresentou esta sua
investigação e ouviu um comentário de um aluno que tinha tido catequese católica em
pequeno: «Isso faz todo o sentido, mas recorda-me o catecismo de Baltimore!». Scott nunca
tinha ouvido falar de um «catecismo de Baltimore», porque era um livrinho elementar, o
primeiro catecismo das crianças católicas da época, e por isso ainda acusou mais o toque.
Então, os católicos, esses heréticos, ensinam às crianças que a Missa é a renovação do
Sacrifício do Calvário?! Algo que ele só tinha descoberto ao fim de tanto esforço de
investigação?!
Primeiro, Scott ficou furioso, despeitado. Depois, continuou a investigar e fez-se católico.

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