O Sino da Minha Aldeia

Impressiona-me neste artigo a verificação de que a verdade do significado das coisas (como o ritmo do tempo marcado pelo sino da igreja que sacraliza o tempo, isto é, que reconhece a sua origem no Senhor de todas as coisas) é verdadeira para todos, sobretudo para aqueles que vivem de foma mais emenhada a sua humanidade, mesmo que a percebam superficial ou confusamente.
Fico contente por isso.
Pedro Aguiar Pinto
O Sino da Minha Aldeia EDUARDO PRADO COELHO
Público, Quarta-feira, 14 de Novembro de 2001


Dizem os jornais que a Direcção-Geral do Ambiente solicitou à Igreja Católica o cumprimento da lei do ruído. Ao que parece, há pessoas que não conseguem dormir porque os sinos lhes interrompem o sono. Sobretudo (e neste ponto não se pode deixar de lhes dar razão) quando os sinos por campânulas são substituídos por mecânicos sistemas de amplificação sonora.

Propõe-se assim que, sobretudo entre as 22 horas e as 7 horas da manhã, os sinos deixem de tocar - para que cada um possa ter o merecido repouso, obtido muitas vezes à custa de um "stress" acumulado e do apoio de soporíferos. Parece que na lei do ruído a Igreja é a principal prejudicada: não apenas está em causa o toque dos sinos, como as normas para a sua intensidade, que têm de ter em conta o que a legislação prescreve relativamente à proximidade de escolas, zonas habitacionais e espaços de recreio e lazer. E basta uma queixa para que a Igreja seja multada.

Acreditamos que as pessoas sofrem mesmo com estas formas de poluição sonora que são os sinos. O que isso significa é que algo na vida delas se empobreceu - e sobretudo que algo se perdeu na qualidade de vida de todos nós. Porque o toque dos sinos - que deveria ser tão pouco incomodativo como para o antigo moleiro o ruído da roda do moinho, que apenas o acordava quando deixava de rodar - foi sempre um sinal de paz, de serenidade e de aceitação deslumbrada da evidência das coisas.

Se os sinos nos incomodam, é porque nós perdemos algo de fundamental: deixámos de ser capazes de ouvir o silêncio. Porque o silêncio não é o não ouvir coisa nenhuma: é o sentimento dessa respiração nocturna donde os sons vêm e para onde os sons regressam. E o que nós queremos, no enredo neurótico das nossas vidas, é esconder a cabeça debaixo das almofadas e não ouvir absolutamente nada - em vez de sentirmos a felicidade dos sons que atravessam a noite: cães que ladram de casa em casa, sinos que tocam devagarinho por dentro das pálpebras.

Como escreveu Joaquim Manuel Magalhães, nesse extraordinário livro que é "Alta Noite em Alta Fraga", "ninguém acerta o relógio por um sino". E Fernando Pessoa, ao explicar que o sino da sua aldeia era o sino que tocava na sua igreja do centro de Lisboa, mostrou como cada uma das suas badaladas soa, não na rua, não no ar, nem sequer no céu, mas, sempre repetida, sempre a primeira que repete outra anterior que desde sempre existiu, "dentro da minha alma".

Se hoje já não somos capazes de ouvir as lentas badaladas das campânulas longínquas, é porque perdemos a capacidade de sentir esse espaço interior do mundo a que os poetas chamam "alma". E a alma não é mais do que isso: o lugar onde os sinos tocam.

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