A Banalidade do Mal

JOSÉ VÍTOR MALHEIROS
Público, Terça-feira, 13 de Novembro de 2001

Nunca um acidente de um enorme avião de passageiros foi recebido com maior frieza que o do Airbus que ontem se esmagou no bairro de Queens, em Nova Iorque, matando todos os seus ocupantes.

Depois de um primeiro momento de suspensão, em que se receou que pudéssemos reviver os momentos do ataque às torres do World Trade Center, em que se imaginou um segundo aparelho espetando-se na parede espelhada da sede das Nações Unidas, ou outro desastre encenado frente às câmaras que apontavam à distância para Queens, a adrenalina diminuiu até a excitação se transformar numa quase indiferença, à medida que a tese do possível ataque terrorista não era confirmada pelos dados.

Claro que a população das zonas limítrofes teve o seu momento de pânico (não é todos os dias que cai um avião na nossa rua), mas mesmo os moradores de Queens que foram entrevistados pelas televisões mostravam um sangue-frio de cirurgiões de Serviço de Urgência e faziam uma descrição factual e detalhada, digna do mais empedrenido dos pivôs televisivos. Reacções tanto mais surpreendentes quanto o acidente teve lugar em Nova Iorque e não num canto perdido da Ásia, com o qual a empatia podia ser mais difícil, e para mais num bairro residencial e não numa montanha inóspita, onde é sempre mais fácil aceitar que as desgraças aconteçam.

A verdade é que o 11 de Setembro colocou o nosso limiar de tolerância do horror num patamar de um nível diferente daquele onde se encontrava antes.

A encenação de mestre dos terroristas (Stockhausen teve o mau gosto de lhe chamar "obra de arte") joga assim, de alguma forma estranha, contra o terrorismo. Será cada vez mais difícil aterrorizar, como é cada vez mais difícil chocarmo-nos com a violência do cinema, ou mesmo impressionarmo-nos com a montra de crueldades dos telejornais.

Hannah Arendt falava da banalidade do mal a propósito de Adolf Eichmann, referindo-se à vulgaridade dos carrascos nazis, ao hábito da crueldade, à perda de sentido com que a rotina embebe a tortura. Mas há também uma banalidade do mal do ponto de vista de quem vê, não apenas de quem executa. O horrível acidente de ontem, com os 255 passageiros e tripulantes que morreram no choque e no incêndio, além dos não se sabe quantos moradores, foi uma manifestação de mais algo que se perdeu desde o 11 de Setembro. Antes só nos impressionávamos com o sofrimento próximo, de agora em diante só nos vamos impressionar com exibições de sofrimento de massas e espectaculares ("artísticas"?).

As pessoas protegem-se dos sentimentos que as perturbam. A fuga da dor alheia é uma das consequências da banalidade do mal à nossa volta. Mas se torna mais difícil o medo, torna também mais longínqua a nossa humanidade.

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