As falsas vítimas
João César das Neves, DN, 20011029
Os terroristas de Setembro justificaram o seu acto cruel pelo facto de serem... vítimas. A suposta legitimidade para matar milhares de inocentes vinha da resposta ao alegado imperialismo americano. Este raciocínio é típico desta época e, embora em geral menos sangrento, é hoje partilhado por muita gente. Vivemos num período em que grande parte da violência, mesmo a mais infame, é apresentada como indemnização de vítimas.
Uma das nossas grandezas é, sem dúvida, a grande preocupação com a equidade e a justiça. Desde o último século que se vive um grande movimento, de leis, programas e instituições para defesa e promoção dos pobres e desprotegidos, dos excluídos e minoritários. O juízo da História irá, certamente, sublinhar a generosidade e o valor do nosso grande interesse pelas vítimas da opressão, desvantagem e discriminação. Mas até os ideais mais elevados podem ser corrompidos. Por isso, frequentemente a luta contra a injustiça é invocada com propósitos muito pouco dignos ou até francamente viciosos. Numa época de relações públicas, é sempre bom ganhar uma imagem de oprimido e injustiçado, para tocar na corda sensível da nossa cultura. Mesmo os agressores o fazem.
Este processo tornou-se rotina. Os sindicatos e empresas, ao lado de verdadeiras queixas, misturam muitas falsas. Trabalhadores e empresários consideram-se automaticamente vítimas de exploração do patrão ou do Estado, independentemente das condições objectivas. A classe operária, mesmo com as regalias actuais, é por definição oprimida e o patronato sente-se sempre injustiçado pelos impostos. Ambos vêem nesse facto a justificação para as exigências mais variadas. Assim, gravíssimas injustiças são apresentadas como "justas reivindicações" para compensar alegados agravos. As verdadeiras vítimas acabam por ser os clientes e os contribuintes, roubados pelos falsos mártires da exploração.
Claro que hoje existem muitos infames abusos. Mas esses, normalmente, passam despercebidos. Vale a pena não esquecer que uma das características mais sensíveis das verdadeiras vítimas é o silêncio e o anonimato. Os crimes são, em geral, feitos às escondidas. Por isso, quando se ouve falar muito de um caso, isso é já um excelente sinal de que o problema não é grave ou está em vias de solução. Foi sempre assim. Na aventura colonial, por exemplo, os países europeus denunciavam ataques mútuos, justificando assim as agressões que praticavam. Mas os autênticos sacrificados eram os índios e os escravos, de quem ninguém falava.
Os casos multiplicam-se. Os homossexuais e as uniões de facto, apesar de viverem triunfantes nos tempos que correm, fazem grande alarde para se apresentarem como vítimas da sociedade. No entanto, quem realmente está a sofrer uma pressão terrível, mediática, legal e cultural é o matrimónio e a família. Múltiplos grupos sociais querem tratamento de excepção devido a agravos fictícios.
Médicos, professores ou camionistas mostram-se sempre humilhados e ofendidos.
Até os canhotos querem ser beneficiados, dizendo-se oprimidos por uma sociedade de destros, numa paródia grotesca aos problemas dos verdadeiros deficientes.
Num tempo que se preocupa tanto com as minorias, acabam por ser as pessoas banais, os cidadãos comuns, os contribuintes normais as verdadeiras vítimas dos interesses organizados, que se apresentam como minorias esquecidas e atacadas. Uma das manifestações mais recentes está no ressurgimento de agravos antiquados, exigindo-se reparações às gerações seguintes dos perpetradores. Começou com os descendentes das vítimas dos nazis, pretendendo que parentes ou sucessores longínquos das pessoas ou empresas que oprimiram os seus antepassados os indemnizem agora principescamente décadas após o acontecido. Na recente reunião da ONU, a prática quis alargar-se aos delitos dos colonizadores de há séculos. Ninguém duvida da gravidade do crime antigo. Mas também é evidente a injustiça de uma restituição anacrónica imposta a inocentes. Pessoas que não são vítimas recebem de pessoas que não são culpadas, as quais acabam por ser as reais vítimas.
A atenção ao verdadeiro sofrimento é vital na sociedade. Mas as coisas nem sempre são tão simples e lineares como parecem, e muitas queixas escondem verdadeiros ataques. Sobretudo é preciso rejeitar a ideia-base de que "ladrão que rouba a ladrão tem cem anos de perdão". Um mal nunca justifica outro mal; e se a vítima do roubo se sente justificada em reciprocar ao agressor, a lógica leva a uma espiral de roubo e violência que tantas vezes surge neste tempo tão justo, precisamente por causa desta falácia. As falsas vítimas existem desde a velha fábula do lobo e do cordeiro. O carnívoro sente-se obrigado a esconder a sua voracidade debaixo do agravo pueril de lhe terem turvado a água. E também ele, como tantos hoje, usa pretextos anacrónicos: "Se não fostes tu, foi o teu pai."
Uma das nossas grandezas é, sem dúvida, a grande preocupação com a equidade e a justiça. Desde o último século que se vive um grande movimento, de leis, programas e instituições para defesa e promoção dos pobres e desprotegidos, dos excluídos e minoritários. O juízo da História irá, certamente, sublinhar a generosidade e o valor do nosso grande interesse pelas vítimas da opressão, desvantagem e discriminação. Mas até os ideais mais elevados podem ser corrompidos. Por isso, frequentemente a luta contra a injustiça é invocada com propósitos muito pouco dignos ou até francamente viciosos. Numa época de relações públicas, é sempre bom ganhar uma imagem de oprimido e injustiçado, para tocar na corda sensível da nossa cultura. Mesmo os agressores o fazem.
Este processo tornou-se rotina. Os sindicatos e empresas, ao lado de verdadeiras queixas, misturam muitas falsas. Trabalhadores e empresários consideram-se automaticamente vítimas de exploração do patrão ou do Estado, independentemente das condições objectivas. A classe operária, mesmo com as regalias actuais, é por definição oprimida e o patronato sente-se sempre injustiçado pelos impostos. Ambos vêem nesse facto a justificação para as exigências mais variadas. Assim, gravíssimas injustiças são apresentadas como "justas reivindicações" para compensar alegados agravos. As verdadeiras vítimas acabam por ser os clientes e os contribuintes, roubados pelos falsos mártires da exploração.
Claro que hoje existem muitos infames abusos. Mas esses, normalmente, passam despercebidos. Vale a pena não esquecer que uma das características mais sensíveis das verdadeiras vítimas é o silêncio e o anonimato. Os crimes são, em geral, feitos às escondidas. Por isso, quando se ouve falar muito de um caso, isso é já um excelente sinal de que o problema não é grave ou está em vias de solução. Foi sempre assim. Na aventura colonial, por exemplo, os países europeus denunciavam ataques mútuos, justificando assim as agressões que praticavam. Mas os autênticos sacrificados eram os índios e os escravos, de quem ninguém falava.
Os casos multiplicam-se. Os homossexuais e as uniões de facto, apesar de viverem triunfantes nos tempos que correm, fazem grande alarde para se apresentarem como vítimas da sociedade. No entanto, quem realmente está a sofrer uma pressão terrível, mediática, legal e cultural é o matrimónio e a família. Múltiplos grupos sociais querem tratamento de excepção devido a agravos fictícios.
Médicos, professores ou camionistas mostram-se sempre humilhados e ofendidos.
Até os canhotos querem ser beneficiados, dizendo-se oprimidos por uma sociedade de destros, numa paródia grotesca aos problemas dos verdadeiros deficientes.
Num tempo que se preocupa tanto com as minorias, acabam por ser as pessoas banais, os cidadãos comuns, os contribuintes normais as verdadeiras vítimas dos interesses organizados, que se apresentam como minorias esquecidas e atacadas. Uma das manifestações mais recentes está no ressurgimento de agravos antiquados, exigindo-se reparações às gerações seguintes dos perpetradores. Começou com os descendentes das vítimas dos nazis, pretendendo que parentes ou sucessores longínquos das pessoas ou empresas que oprimiram os seus antepassados os indemnizem agora principescamente décadas após o acontecido. Na recente reunião da ONU, a prática quis alargar-se aos delitos dos colonizadores de há séculos. Ninguém duvida da gravidade do crime antigo. Mas também é evidente a injustiça de uma restituição anacrónica imposta a inocentes. Pessoas que não são vítimas recebem de pessoas que não são culpadas, as quais acabam por ser as reais vítimas.
A atenção ao verdadeiro sofrimento é vital na sociedade. Mas as coisas nem sempre são tão simples e lineares como parecem, e muitas queixas escondem verdadeiros ataques. Sobretudo é preciso rejeitar a ideia-base de que "ladrão que rouba a ladrão tem cem anos de perdão". Um mal nunca justifica outro mal; e se a vítima do roubo se sente justificada em reciprocar ao agressor, a lógica leva a uma espiral de roubo e violência que tantas vezes surge neste tempo tão justo, precisamente por causa desta falácia. As falsas vítimas existem desde a velha fábula do lobo e do cordeiro. O carnívoro sente-se obrigado a esconder a sua voracidade debaixo do agravo pueril de lhe terem turvado a água. E também ele, como tantos hoje, usa pretextos anacrónicos: "Se não fostes tu, foi o teu pai."
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