O maior dom
João César das Neves
Diário de Notícias, 20011112
Tempo é dinheiro. E nos tempos que correm, com a enorme ocupação geral, tempo é mesmo muito dinheiro. Por isso, dar tempo aos outros é hoje uma das ofertas mais difíceis e valiosas que se podem fazer. Estamos no Ano Internacional dos Voluntários, iniciativa com que a ONU pretende chamar a nossa atenção para a miríade de actividades desinteressadas em que, um pouco por todo o mundo, muitas pessoas se entregam em solidariedade ao próximo. Dada a estrutura da vida moderna, estas iniciativas contam-se entre as dádivas mais generosas da sociedade contemporânea. A opinião corrente é que vivemos num mundo egoísta e impiedoso, mesquinho e calculista, onde nada se dá sem receber algo em troca. No entanto, nesta como em todas as épocas, existem muitos exemplos grandiosos de benevolência generosa e altruísmo empenhado que nascem de uma nobre atitude de vida. As sociedades mecânicas e capitalistas, onde o poder de mercado domina, são também aquelas que mais se têm destacado nestas acções voluntárias. Aliás, o progresso económico é mesmo um dos principais factores decisivos na promoção dessa realidade. Fazendo subir o nível de vida e, sobretudo, criando tempo livre, ele permite às pessoas que se sentem interpeladas pelo sofrimento alheio ou por causas sociais o acesso aos meios para atender a essas necessidades. Claro que sempre houve ajuda desinteressada e gratuita, muitas vezes heróica e revolucionária. A diferença agora está nas novas características particulares, típicas do nosso tempo. Aquilo que as gerações antigas faziam muitas vezes de forma entusiasta mas improvisada é hoje realizado de maneira orgânica, rigorosa e planeada. Num tempo que se considera eficiente e produtivo, o voluntariado representa a formalização da beneficência e a sistematização da caridade. Esses organismos são em geral instituições caracteristicamente actuais, compartilhando da visão corrente do mundo e usando os métodos e técnicas contemporâneos. Nas sociedades ocidentais mais avançadas, o voluntariado é hoje já uma acção vastíssima e diversificada, com forte impacte local e mundial. São múltiplas as pessoas que se empenham em instituições de natureza muito diversificada. Alguns dedicam muito do seu tempo livre a actividades humanitárias, culturais e artísticas. Apoiam museus, escolas, hospitais, prisões, câmaras municipais, ajudam pobres e doentes, drogados ou abandonados, promovem a história, a música ou o folclore, protegem o ambiente e a qualidade de vida, incitam ao diálogo inter-racial e intercomunitário. Outros, em geral ligados a "organizações não governamentais para o desenvolvimento" (ONGD), partem para regiões subdesenvolvidas entregando alguns anos da sua vida aos mais pobres. A iniciativa de dar a conhecer esta realidade é meritória porque de facto muito deste trabalho, de grande valor, acaba por ficar ignorado. Em Portugal, por exemplo, a pouco conhecida Leigos para o Desenvolvimento é a ONGD nacional com mais cooperantes no terreno, envolvendo à volta de trinta pessoas por ano em projectos directos nos países pobres. Em São Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique, Malawi, Timor e também aqui em Portugal, esta pequena organização já integrou dezenas de cooperantes na criação de escolas, cozinhas sociais, bibliotecas, centros de apoio à infância, à terceira idade e à ocupação de tempos livres, apoiou a alfabetização, os refugiados, a agricultura e até a construção dos edifícios correspondentes, deu serviço em hospitais, instituições de ensino, e tantos outros. Com pouco mais de 15 anos de existência, este grupo católico, ligado à Companhia de Jesus, é simplesmente constituído por pessoas comuns, dispostas a dedicar pelo menos dois anos da sua vida a ajudar os mais necessitados. Estes voluntários, normalmente jovens, interrompem as suas carreiras profissionais e deixam as suas famílias. Em troca recebem uma experiência humana única que os marcará para sempre. E esta é apenas uma entre múltiplas e variadas ONGDs portuguesas, sendo Portugal um País onde, ainda assim, este fenómeno está no seu início. Na Europa Ocidental e na América do Norte são sobretudo os jovens e os idosos os grandes intervenientes nestas actividades. A razão principal está ligada à sua maior disponibilidade, mas também ao grande proveito que daí tiram. Para a juventude e a terceira idade, o voluntariado é uma forma excelente de se integrarem na sociedade que é, já e ainda, a sua. Abandonando o divertimento acéfalo em que tantos os querem prender e repudiando a crítica derrotista, fácil e azeda aos males do mundo, mostram assim que são cidadãos de corpo inteiro, úteis e construtivos. A sua nobre atitude de vida dá um sinal de esperança no concreto da resolução de problemas. O voluntariado é a manifestação em pleno de uma das maiores verdades da humanidade: é dando que se recebe. E o maior dom é um pedaço da própria vida.
naohaalmocosgratis@vizzavi.pt
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