O charme irresistível do perigoso Jordan Peterson

Tiago Cavaco escreve sobre "12 Rules for Life", o livro de um professor que vai de Nietzsche às princesas da Disney, da Bíblia aos pais da psicologia com uma integridade intelectual única.


Título: “12 Rules for Life — An Antidote to Chaos”
Autor: Jordan B. Peterson

Conseguem imaginar o Pavilhão Atlântico a encher-se para uma discussão entre dois escritores, neste caso um céptico que tende a arrasar qualquer religião e outro, que não sendo propriamente religioso, defende que ter fé não é estúpido? Eu não consigo. E, sim, usei o nome antigo de Pavilhão Atlântico porque Meo Arena, e Altice Arena são apenas a confirmação de que o mercado livre, sendo uma coisa boa, tende a não ter critério para nomes. Enquanto Lisboa dorme o seu sonho de triunfo turístico, uma coisa parecida anda a acontecer um pouco por todo o mundo à custa de Jordan Peterson, o psicólogo clínico tornado sensação de YouTube que escreveu um livro chamado 12 Rules For Life — An Antidote To Chaos. Ele sozinho esgota auditórios e, volta e meia e para apimentar a conversa, discute com super-ateus como o Sam Harris. Bem sei que o Summit da tecnologia tem trazido milhares à zona da Expo mas não é bem a mesma coisa. E, no entanto, guardo alguma esperança de que a agenda de Peterson ainda arranje um buraquinho português para o termos cá.
É fácil gastar cinco minutos na internet, e no YouTube em particular, e alinhar com a teoria de que, mais dia menos dia, teremos culturalmente a nossa própria Queda de Roma. A música é má, as causas políticas parecem circo e talvez o pior seja a leveza com que todo este desastre estético é tomado como virtude. Mas depois, e para contrariar pessoas rezingas como eu, encontramos fenómenos como o de Jordan Peterson, em que milhões de miúdos gastam horas a ouvir aulas de um professor universitário que vai do Nietzsche às princesas da Disney, da Bíblia aos pais da psicologia como Carl Jung, com uma paixão e uma integridade intelectual única. Como seria de esperar, e recuperando o meu habitual tom apocalíptico, não há integridade que não seja um alvo a abater por aqueles que fazem das suas convicções progressistas uma Inquisição contemporânea: Peterson já é acusado de ser guru da alt-right, de ser um perigoso machista, ou mesmo a nova encarnação de Joseph Goebbels. Mas, graças a Deus, ainda há muitos miúdos com olhos na cara.
Não deixa de ser curioso que, olhando para a nossa chamada comunicação social tradicional, nada do que vos falo parece existir. Só para citar alguns nomes que qualquer miúdo com uma ligação à net e que tenha aprendido inglês na escola corre o risco de conhecer e seguir, menciono o Ben Shapiro, o histriónico Milo Yiannopoulos e, claro, agora fulgurantemente, Jordan Peterson. Os nossos jornais e televisões parecem ignorar estas pessoas ou, pior, quererem que elas sejam ignoradas. Será que uma das virtudes inesperadas da internet é mostrar que, de facto, há uma comunicação social bem ciosa daquilo que não deve ser comunicado? Espero que não, mas, se assim for, também é certo que hoje só segue a comunicação social portuguesa quem quiser.
Quero em cinco pontos breves ilustrar a o vigor que me fez render a Jordan Peterson e ao seu livro. O primeiro diz que pensar custa; o segundo diz que uma antropologia negativa requer a necessidade de um amor exigente; o terceiro diz que ou combatemos o sofrimento ou vamos seguramente para o Inferno pela via do ressentimento; o quarto diz que a preponderância da palavra, ouvindo e falando com precisão, é a cura; e o quinto diz que o sacrifício é o que nos dá paz. Para isso, mas para não o fazer desta maneira que certamente se tornará chata, vou assumir o tom que melhor respeita os muitos miúdos que, na sua informalidade millenial, mostram mais abertura intelectual do que os seu pais. Vou tratar o leitor por tu e vou tratar mal o leitor. Entenda-se que tratar mal o leitor é, na verdade, a imposição de uma regra no jogo que não assume que, por defeito, pensamos bem. Geralmente pensamos melhor quando algo nos provoca. Mas, como não quero já estragar parte do impacto do credo petersoniano, passemos directamente para ele.
1. Para todos os efeitos, 12 Rules For Life — An Antidote To Chaos é um livro de auto-ajuda. Reconhece que, no teu pífio discernimento literário, já leste muito lixo de auto-ajuda. Fica sabendo que a literatura de auto-ajuda tem uma única virtude: ela revela que, pelo facto de a consumires, precisas de ajuda mesmo. A boa notícia é que, se ainda não foste capaz de entender que os livros de auto-ajuda têm garantido que andas longe de ter uma vida intelectual saudável, terás no livro de Jordan Peterson provavelmente o único que trará alguma esperança ao pouco que resta dos teus neurónios. A bebedeira de auto-estima que tens prolongado à custa de volumes que te fazem sentir bem com o teu tesouro interior que, para o prejuízo da higiene das pessoas à tua volta, tens desenterrado publicamente, precisa de uma injecção de cafeína deste calibre: “pensar é emocionalmente doloroso, bem como fisiologicamente exigente; mais do que qualquer outra coisa – excepto não pensar”.
2. Não comeces já a chorar. A maior esperança que te pode ser dada é, usando um termo mais técnico, receberes a visita da antropologia negativa em abraço apertado. É precisamente por seres de origem ruim que precisas de ajuda. Se fosses bom, serias auto-suficiente e, acredita: o facto de continuares a ler auto-ajuda só confirma a tua toxicodependência de mensagens que te convencem da bondade que não tens. O Peterson coloca a questão assim: “Vimos o inimigo e, no fundo, o inimigo somos nós. (…) Fazer aos outros o que gostávamos que nos fizessem a nós ou amar o próximo como a nós mesmos (…) não tem nada a ver com sermos bonzinhos (being nice)”. Por isso, certifica-te que arranjas amigos decentes ao ponto de serem capazes de te dar um toque subtil de cada vez que és uma besta. Receberás provavelmente muitos toques porque, de facto, na maior parte das vezes não és grande coisa. Mas, vê o aspecto positivo no meio da desgraça: és um bruto quase incorrigível mas tens amigos a sério.
3. A vida é, na maior parte das vezes, tramada. Como diriam os antigos: viver é sofrer. Quanto mais consciência tiveres que não terás uma Disneylândia à tua espera, provavelmente as pessoas terão mais confiança em ti. Por outro lado, ao olhares para alguns dos sarilhos em que te meteste como resultado das escolhas estapafúrdias que fizeste, tornas-te mais eficaz para saíres deles, limpando parte da sujeira que tu próprio criaste. O Peterson explica assim:
Talvez a tua miséria é a tua tentativa de provar que o mundo é injusto, em vez de ser a evidência do teu próprio pecado, de falhares o alvo, a tua rejeição consciente de lutares e viveres”.
Menos do que isto é queres emparaísar à força uma fantasia que rapidamente se torna um Inferno real que não te vai soltar. Ouve o Peterson novamente:
“Consulta o teu ressentimento. Ele é uma emoção reveladora, por toda a sua patologia. É parte de uma tríade maligna: arrogância, engano e ressentimento. (…) Os judeus antigos culpavam-se sempre a si mesmos quando as coisas desabavam. Eles agiam como se a bondade de Deus — a bondade da realidade — fosse axiomática, e tomavam a responsabilidade pelos seus próprios fracassos. Isso é loucamente responsável. Mas a alternativa é julgar a realidade como insuficiente (…) e afogar-se no ressentimento e no desejo de vingança. (…) Sofrer terrivelmente e saber que és a causa: isso é o Inferno”.
4. Viveres sem menos do que uma atitude real de luta é embarcares na pior mentira de todas. Olha o Peterson: “Apenas a filosofia mais cínica e desesperançada insiste que a realidade pode ser melhorada através da falsificação. (…) Milton acreditava que a rejeição teimosa diante do erro significava a saída do Céu”. E como é que se luta? Sobretudo com a boca. Como assim? Em primeiro lugar, é preciso ouvires o que sai da boca dos outros.
Se realmente compreenderes uma pessoa, se estás disposto a entrar no seu mundo privado e ver o modo como a vida lhe aparece, corres o risco de tu próprio mudares”.
Isto é completamente diferente de apenas te relacionares com pessoas que concordam contigo nas coisas que tens como sagradas; aí apenas tens a garantia de que te tornarás cada vez mais o que já tens sido. Em segundo lugar, é preciso saber falar com rigor. “O passado pode ser redimido, quando reduzido por linguagem precisa à sua essência”. Lutar com os lábios faz parte de uma atitude de fé que o judaísmo e o cristianismo sempre defenderam por saberem que o poder criador e curativo vem da palavra, que inventou todo o Universo. “A moral do Génesis 1 é que o Ser ser trazido à existência através de discurso verdadeiro é bom”. Logo, treina fazendo o exercício de encontrares alguém que tenha uma posição diametralmente oposta à tua nos assuntos mais importantes da tua vida, e ouve-a com atenção, respondendo-lhe com cuidado. Tens tentado isto? Claro que não, porque és um medricas isolado num grupo de amigos que se limita a garantir o saloio narcisismo com que eles próprios também se tentam imunizar de um mundo que os coloque em causa.
5. Por fim, prepara-te para muitos e muitos sacrifícios. Reconhece novamente que serias incapaz de comprar um livro que na capa trouxesse a ideia do sacrifício, o que só demonstra que queres sol na eira e chuva no nabal. Queres ser tido como minimamente inteligente ao mesmo tempo que compras a burrice de acreditar que é possível ter uma vida decente sem te sacrificares por algo que valha mais do que tu. Olha o Peterson:
“Quando se envolveram com sacrifícios, os nossos antepassados começaram a pôr em prática aquilo que podia ser considerado uma proposição, se fosse colocada em palavras: algo melhor pode ser alcançado no futuro através de renunciar algo de valor no presente. (…) O problema central da vida — lidando com os seus factos brutos — não é meramente o que sacrificar e como para que o sofrimento diminua, mas o que sacrificar e como para que o sofrimento diminua e [diminua também] o mal — a fonte consciente, voluntária e vingativa do pior tipo de sofrimento”.
O paradoxo é que só algo tão árduo e exigente como o sacrifício pode ser a origem de uma paz verdadeira. “Para escolheres buscar a paz tens de decidir que queres a resposta, mais do que queres estar certo. (…) O teu coração tem de estar aberto à terrível verdade. Tens de ser receptivo àquilo que podes não querer ouvir. Quando decides aprender acerca das tuas falhas, para que possam ser rectificadas, abres uma linha de comunicação com a fonte de todo o pensamento revelador.”
Logo, vai, compra este livro de auto-ajuda para que auto-ajudes ao ponto de não precisares de mais auto-ajuda. E pede a Deus por um Jordan Peterson a meter Lisboa na agenda.

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