A história de duas cidades

JOSÉ MARIA SEABRA DUQUE       PÚBLICO          27.09.17   



Lisboa é hoje uma cidade na moda. O número de turistas parece não parar de aumentar. Os restaurantes, bares, assim como toda uma panóplia de pequeno comércio trendy, florescem. O fim da crise, os vistos gold e a nova lei das rendas reanimaram o mercado imobiliário. O maciço programa de obras da câmara municipal construiu a ideia de uma cidade mais amiga do ambiente e mais moderna.

E estes factos são bons. Evidentemente que todos trazem os seus inconvenientes. É verdade que o programa de obras públicas é muitíssimo questionável. Mas não se pode deixar de reconhecer que Lisboa está hoje mais bonita e mais cosmopolita.

Contudo, existe uma outra Lisboa. Uma cidade que não aparece nas revistas de viagens nem nos sites de cultura e lazer. Uma cidade que não sabe o que seja um sunset, uma cerveja artesanal ou um hambúrguer gourmet. Uma cidade para quem as ciclovias são apenas um estorvo para apanhar o autocarro e para quem as latas de conserva não são um objecto vintage mas uma fonte de alimentação.

Existe uma Lisboa onde centenas de idosos vivem sozinhos, em casas decrépitas. Muitos já não são capazes de sair à rua e vivem da caridade de vizinhos, das ajudas da Santa Casa ou de uma instituição de solidariedade social.

Uma Lisboa com bairros pobres (daqueles que não têm a sorte de ser históricos, e por isso ainda não foram invadidos por jovens hipsters), com escolas degradadas, onde a maioria dos moradores trabalha muito e ganha pouco. Bairros com ruas dominadas por pequenos criminosos, onde é difícil romper o círculo da pobreza.

Uma Lisboa com homens e mulheres que vivem na rua. Pessoas com um enormíssimo conjunto de problemas e que sobrevivem graças aos voluntários que todas as noites saem por essa Lisboa a distribuir refeições e apoio a quem não tem tecto.

E, sobretudo, uma Lisboa, que é a cidade da maioria dos lisboetas, de pessoas de classe média/média-baixa, cujos ordenados mal pagam uma renda. Pessoas que perdem horas e horas em transportes públicos lotados. Lisboetas que não arriscam ter filhos na sua cidade, porque escasseiam as creches, porque é impossível ter carro, porque que é muito complicado enfiar duas ou (imagine-se a loucura) três crianças pequenas num autocarro a abarrotar (e ainda menos numa bicicleta).

Existe uma Lisboa real para além da Lisboa das revistas e das reportagens televisivas. Uma cidade que vive para além da imagem trendy, eco-friendly e cosmopolita. Uma Lisboa de idosos, de famílias, de jovens casais, de adolescentes e crianças que vivem numa cidade com rendas cada vez mais altas, com transportes públicos cada vez mais degradados. Uma cidade onde os apoios sociais dependem de instituições privadas. Uma cidade abandonada pela autarquia.

O trabalho de transformar Lisboa numa cidade que recebe bem quem vem de fora foi feito e bem feito, tendo tornado a capital num ponto de atracção para turistas e investidores estrangeiros. Falta agora transformar Lisboa numa cidade atractiva para os lisboetas.

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