O nosso admirável Portugal novo

José Manuel Fernandes

Público, 07.08.2007

Regulamentar o acesso às profissões. Criar uma caderneta individual de competências. Acrescentar os organismos públicos de fiscalização. Assim se constrói um Portugal "eficiente". Está tudo na resolução do último Conselho de Ministros

Passou quase desapercebida a resolução do Conselho de Ministros de 2 de Agosto onde se anuncia legislação sobre o acesso e o exercício das profissões, tendo "em conta aspectos essenciais, partindo da identificação do interesse colectivo ou das razões inerentes à própria capacidade que fundamentam a restrição à liberdade de escolha da profissão". Na conferência de imprensa que se seguiu, o ministro Vieira da Silva deu, como exemplos das profissões a regular, a de jornalista e a piloto de linha aérea.
Acontece, porém, que, na redacção daquela resolução, se procede a uma importante inversão da ordem dos factores, quando a comparamos com o texto constitucional. É que, enquanto este, no seu artigo 47.º, estabelece que "todos têm o direito de escolher livremente a profissão ou o género de trabalho, salvas as restrições legais impostas pelo interesse colectivo ou inerentes à sua própria capacidade", na resolução o "interesse colectivo" e as "razões inerentes à própria capacidade" já não surgem como excepções, antes como restrições à liberdade de escolha - ou seja, como regras regulamentares.
A diferença não é pequena, se considerarmos que, ao mesmo tempo, se anuncia o "estabelecimento do Sistema Nacional de Qualificações", que incluirá "o Quadro Nacional de Qualificações, o Catálogo Nacional de Qualificações e a Caderneta Individual de Competências"; que, nesta última, pretende registar-se, imagine-se, "o conjunto das competências e formações certificadas, permitindo aos indivíduos apresentar de forma mais eficaz as formações e as competências que foram adquirindo ao longo da vida". Mais: que, para o acesso às tais profissões "especiais", haverá uma "entidade pública competente para emitir o título profissional e a validade do mesmo", ao mesmo tempo que, "no caso de profissão já anteriormente regulamentada", se criará "o correspondente regime transitório". Vieira da Silva não clarificou se estas profissões já "regulamentadas" incluem as de advogado, médico, engenheiro ou qualquer daquelas em que é uma Ordem a desempenhar essas funções sem interferência do Estado.
Mas aquilo que assusta em toda esta montagem é a sua lógica interna, coerente com o essencial do que tem sido a produção legislativa deste Governo: onde se deveria apenas regular, permitindo aos agentes actuar com o maior grau de liberdade possível, tem-se preferido regulamentar de forma minuciosa e detalhada, substituindo os actores dos diferentes sistemas por "comissões" onde o Estado tem sempre uma palavra a dizer. Da recentíssima lei da televisão ao novo regime jurídico das instituições do ensino superior, das comissões para aprovação dos livros escolares à recusa de concessão de autonomia administrativa e financeira ao nosso principal museu nacional, da lei das finanças locais ao protagonismo crescente do grupo bancário do Estado, o padrão repete-se: em última análise, e em nome da "eficiência", caminha-se para um Estado "em que o todo--poderoso comité executivo dos chefes políticos e o seu exército de directores" tudo controlará.
Claro que os "indivíduos que governam" "não são loucos", pois "o seu fim não é a anarquia, mas a estabilidade social". Área em que têm sido mestres, pois sabem que "grande é a verdade, mas maior ainda, do ponto de vista prático, é o silêncio a respeito da verdade. Abstendo-se simplesmente de mencionar alguns assuntos, baixando aquilo que o senhor Churchill chama uma "cortina de ferro" entre as massas e certos factos que os chefes políticos locais consideram como indesejáveis, (...) têm influenciado a opinião de uma maneira bastante" eficaz.
Poderíamos continuar as citações, todas extraídas do prefácio à segunda edição de um livro escrito há 75 anos onde a Utopia permitia não apenas regular, não só regulamentar, mas programar a "estabilidade social", fabricando, através da clonagem industrializada, os seres humanos necessários e ideiais para cada profissão. Esse mundo imaginado e "ideal", onde "comissões de certificação" e "cadernetas de competências" seriam obsoletas, é o Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, uma agradável leitura de férias. E uma leitura que as resoluções citadas tornam bem actual.
José Manuel Fernandes

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