Aaron Jean-Marie Lustiger, o cardeal judeu

Público, 12.08.2007, Esther Mucznik

Até ao fim, foi o incansável obreiro de uma relação mais fraterna entre judeus e cristão

"Exaltado e santificado seja o Seu grande Nome, no mundo que Ele criou por Sua vontade..." Assim começa o kadish, oração judaica dos enlutados, que abriu na passada sexta-feira a cerimónia de homenagem ao Cardeal Jean-Marie Lustiger no adro da catedral de Notre-Dame de Paris.
Judeu de nascimento e católico por opção, o Cardeal quis fazer da sua cerimónia fúnebre um acto simbólico da sua própria vida: por sua vontade expressa, Jonas Moses-Lustiger, neto do seu primo Arno Lustiger, leu em hebraico e em francês o salmo 113; em seguida, depositou no caixão um pouco de terra trazida de Jericó e de Jerusalém e levada ao Santo-Sepulcro e ao Muro das Lamentações, símbolos respectivos da cristandade e do judaísmo. Por sua vontade também, Arno Lustiger pronunciou o kadish junto ao caixão, acompanhado por rabinos e entidades judaicas.
Parodoxal, este cerimonial judaico a preceder as exéquias cristãs do cardeal Lustiger, presididas pelo seu sucessor, o cardeal André Vingt-Trois? Talvez não, se tivermos em conta a vida e a personalidade deste homem extraordinário, no sentido literal da palavra.
Conversão aos 14 anos
Aaron Lustiger nasceu em 1926 no seio de uma família judia polaca que emigrara para França durante a I ª Grande Guerra. O avô foi rabino ortodoxo em Bedzin, na Polónia, e os pais não sendo religiosos, educaram os filhos na consciência da sua identidade judaica. Depois da ocupação da França pela Alemanha nazi em 1940, Aaron e a sua irmã Arlette foram enviados de Paris para Orleães, para casa de uma família católica, como forma de assegurar a sua protecção, tal como milhares de crianças judias na época. É aí que Aaron se converte ao catolicismo, contra a vontade dos pais, acrescentando o nome de Jean-Marie ao seu próprio nome: tinha 14 anos. Dois anos mais tarde, em Paris, a sua mãe, Giselle, denunciada por um vizinho, é presa e deportada para Auschwitz onde é gaseada. O pai sobrevive à guerra e tenta sem sucesso anular a conversão do filho. Em 1954 assistirá, nos bancos de trás, à sua ordenação para padre.
Como clérigo, Jean-Marie foi capelão na Sorbonne, onde estudara literatura antes de entrar para o seminário, servindo em seguida na paróquia de Sainte-Jeanne de Chantal, em Paris, antes de voltar a Orleães já como bispo. Em 1981, o Papa João Paulo II com quem tinha afinidades profundas que não se limitavam às origens polacas comuns, nomeia-o arcebispo de Paris e em 1983 cardeal, cargo que ocupará até 2005.
Toda a sua vida, Aaron Jean-Marie afirmou a sua identidade judaica em paralelo com a cristã: "Nasci judeu e assim permaneço, embora para muitos isso seja inaceitável. Para mim, a vocação de Israel é trazer a luz aos goim [gentios]. Essa é a minha esperança, e eu acredito que o cristianismo é o meio para o conseguir", afirmou numa entrevista ainda como arcebispo, causando algum mal-estar nos meios rabínicos. "Um judeu ao tornar-se cristão, não promove o autêntico judaísmo, mas volta-lhe as costas", respondeu na época o grão-rabino de Paris.
No entanto, o cardeal assumiu pública e abertamente, até na morte, a sua pertença judaica e todos os anos, por ocasião do serviço religioso em memória dos deportados, deslocava-se à grande sinagoga de Paris. Foi o grande obreiro do estreitamento das relações judaico-cristãs: teve um papel decisivo na resolução do conflito a propósito da presença das carmelitas polacas em Auschwitz, contribuindo para a sua deslocação para outro local menos simbólico do sofrimento judaico; foi o inspirador da declaração de arrependimento da igreja de França em 1997, no antigo campo de Drancy; contribuiu decisivamente para o sucesso da visita histórica de João Paulo II a Jerusalém em 2000; foi o impulsionador dos encontros internacionais para o diálogo judeo-cristão que até hoje se reúnem anualmente em Nova Iorque. Até ao fim, Aaron Jean-Marie foi o incansável obreiro de uma relação mais fraterna entre judeus e cristãos.
Um homem de mudança
Como membro da Igreja católica, foi homem de uma fé ardente e de afirmação. Contra os que defendiam que a juventude europeia não era receptiva à religião, conseguiu juntar em Paris mais de um milhão de jovens no Dia Mundial da Juventude, em 1997. Toda a sua vida combateu a secularização e a descristianização, denunciando a pretensão do homem moderno a viver sem Deus. Denunciou sem tréguas o comunismo, "construído sobre a impostura", o racismo "todos os homens são iguais na dignidade, porque criados à imagem de Deus", a visão da sociedade como um conjunto de comunidades religiosas, étnicas ou culturais, defendendo, em contrapartida, a integração, a laicidade e o respeito dos direitos, em particular a uma educação livre. Construiu novas igrejas e novas escolas de formação teológica, fundou uma rádio e uma televisão católicas. Promoveu a descentralização das estruturas da Igreja e uma intervenção activa na sociedade, o diálogo com a as artes, a cultura e a filosofia. Consciente da importância crescente das cidades, foi para elas que voltou o seu esforço de evangelização. Foi nesse quadro que veio a Portugal em Novembro de 2005, para a 3ª sessão do Congresso Internacional da Nova evangelização. O cardeal Lustiger, não foi provavelmente um homem consensual, mas foi certamente um homem de mudança.
Conheci-o pessoalmente em 2005, em Bruxelas, por ocasião de uma Assembleia Geral do Congresso Judaico Mundial, onde Lustiger foi um dos convidados de honra. A sua intervenção, constantemente interrompida pelos aplausos das centenas de participantes judeus de todo o mundo, e a sua presença de uma humanidade quase dolorosa, tocaram-me profundamente: "Sou tão judeu como todos os membros da minha família que foram assassinados em Auschwitz... temos, cristãos e judeus uma responsabilidade mútua - o combate sem tréguas contra o antisemitismo..."
Confesso que a conversão de Aaron permanece para mim um mistério incompreendido. Mas ninguém pode ler no coração de um homem - e reconheço no cardeal Lustiger um destino excepcional. Como disse Maurice Druon da Academia Francesa na homenagem fúnebre: "Vós fostes uma forma de milagre, o impossível existente, vós fostes o cardeal judeu."

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