O FIM DA CONCORRÊNCIA LIVRE E NÃO DISTORCIDA

Diário de Notícias 20070806

João César das Neves
professor universitário
naohaalmocosgratis@fcee.ucp..pt

No meio de dificuldades uma nova geração de políticos toma as rédeas da Europa. A sua primeira tarefa é majestosa: definir os princípios da União. O Presidente francês, Nicolas Sarkozy, teve já uma influência decisiva, ao retirar a concorrência dos princípios da Constituição Europeia. O n.º 3 do artigo 3.º do futuro Tratado dizia: "A União Europeia estabelece um mercado interno, onde a concorrência seja livre e não distorcida." Agora a frase termina na vírgula.
A Europa descobre assim que está enganada há 50 anos. Sarkozy explicou as razões: "Isso vai talvez dar um pouco mais de humanidade à Europa. Porque enquanto ideologia, enquanto dogma, que deu a concorrência à Europa? Deu cada vez menos gente que vota nas eleições europeias, cada vez menos pessoas que acreditam na Europa. Havia talvez a necessidade de reflectir. Eu acredito na concorrência, acredito nos mercados, mas acredito na concorrência como meio e não como fim em si. Isso vai talvez dar também uma jurisprudência diferente à Comissão. A de uma concorrência que está lá para favorecer a emergência de campeões europeus, para levar a uma verdadeira política industrial. A protecção lembra talvez a todos os chefes de Estado e de governo que a Europa está lá para proteger, não para inquietar. Mas se tudo estivesse bem na Europa, se tudo fosse perfeito, pergunto-me verdadeiramente porque temos tantos problemas" (declaração de 23 de Junho em http://www.elysee.fr/).
Esta declaração da nova estrela política europeia revela muito sobre o futuro da União. Revela por exemplo que o populismo dos novos líderes nada deve à lógica. Será que a Europa tem falta de humanidade por excesso de concorrência? Alguém no seu juízo pensa que se houvesse menos liberdade e mais distorção os europeus seriam mais humanos? Será que é a suposta concorrência livre e não distorcida que gera o desinteresse dos eleitores? Se a concorrência fosse mais limitada e distorcida haveria menos abstenção e desinteresse nas instituições? Será que na Europa a concorrência é não um meio mas um fim? Alguém, até o liberal mais fanático, quer a concorrência como um fim, a concorrência pela concorrência?

A declaração mostra também que o novo populismo europeu nada deve ao realismo. Onde está o tal excesso de concorrência na Europa? Há muito que a Comissão prende as empresas europeias em miríades de regulamentos tontos e paralisantes e favorece os supostos "campeões nacionais". Campeões que, é preciso dizer, não são assim tão fortes se precisam do tal apoio. Imagine-se essa lógica aplicada ao desporto onde, em nome da humanidade, cada país financiasse o doping de alguns dos atletas. O desporto europeu só é bom porque lá ainda vigora a concorrência livre e não distorcida, para bem do espectáculo e da verdade.

A concorrência é sem dúvida a razão dos problemas da UE no mercado global. Mas por falta, não excesso. A economia mundial mostra hoje bem o valor da abertura de mercados, sem batotas nem distorções. Índia, África, China, EUA concorrem, enquanto a tímida Europa insiste que os políticos escolham os campeões. Assim não tem hipóteses. O sucesso na globalização vem não da fraude da "verdadeira política industrial" mas da competição livre e não distorcida que a Europa professa há décadas, mas não pratica.

Enquanto ideologia, enquanto dogma, que deu a concorrência à Europa? Deu, por exemplo, Nicolas Sarkozy como Presidente. Na política o dogma da concorrência livre e não distorcida chama-se "democracia" e por ela Sarkozy foi eleito. Num processo "protegido" ele teria sido derrotado, pois nenhum líder francês o considera "campeão".

Na ambiguidade habitual das declarações comunitárias, os funcionários fizeram o possível por minimizar o significado da referida correcção ao Tratado. Disseram que a expressão eliminada é referida outras 13 vezes nos textos legais da UE.

De facto o problema da Europa nunca foi a falta de promessas de concorrência livre e não distorcida. O que falta é mesmo essa concorrência. Por isso "temos tantos problemas".

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