Um livro muito raro

MÁRIO PINTO    OBSERVADOR    08.12.2019


A obrigação de o Estado criar uma rede de estabelecimentos suficiente para acolher todos os alunos que escolham as escolas do Estado, não lhe dá nenhum direito a um monopólio da «acção educativa».


1. Na passada segunda feira, 2 de Dezembro, teve lugar, no auditório da Rádio Renascença, uma sessão de apresentação de um novo livro, intitulado “Escola de todos, para todos, com todos”. Com um prefácio do ex-Presidente Ramalho Eanes, um posfácio do Prof. Barbas Homem e introduções do Bispo D. António Moiteiro e do Dr. Fernando Magalhães, o livro reúne artigos de 29 autores, todos dedicados à questão fundamental das liberdades de educação, sobretudo de educação escolar. A título de declaração de interesses, direi que eu próprio participo neste elenco. A sua coordenação é da Associação Portuguesa de Escolas Católicas (APEC); e a edição é da Fundação Secretariado Nacional da Educação Cristã. Mas o livro não tem uma intenção confessional — nele se defendem as mesmas liberdades de educação igualmente para todos. Os seus autores, uns são publicamente crentes, outros não são crentes, também publicamente. A liberdade de educação, familiar e escolar, é um ideal e uma aspiração que une todos os homens que respeitam e servem a dignidade da pessoa humana, subscrevendo e observando a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), bem como os dois Pactos Internacionais que a complementam: o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e o Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais (PIDESC). Felizmente, a doutrina destes solenes documentos (de vigência universal para os Estados das Nações Unidas) está acolhida na Constituição Portuguesa; mas, infelizmente, não é respeitada nem é cumprida pelo Estado Português. E daí uma especial justificação deste livro.

2. A sessão de apresentação do livro foi rica de intervenções, e em balanço final muito interessante e culta. Aberta pelo Secretário Geral da APEC, e coordenador executivo do livro, o Doutor Jorge Cotovio, foi depois preenchida pelas intervenções de um painel de oradores moderado pela jornalista Graça Franco. Em curtas mas substanciosas intervenções, amável mas firmemente controladas na sua duração pela moderadora, falaram o Presidente da APEC, Dr. Fernando Magalhães, o Senhor Bispo D. António Moiteiro (Presidente da Comissão Episcopal para a Educação), o Prof. Barbas Homem (Reitor da Universidade Europeia e reconhecido especialista em Direito da Educação), e finalmente o Dr. Marques Mendes, este último na pesada incumbência de uma apreciação final do livro, que cumpriu muito bem.

3. Mas tão importante como noticiar, é fazer e partilhar uma reflexão sobre este invulgar encontro. Pessoalmente, interrogo-me como é que um problema tão importante, como o dos direitos fundamentais de educação (quer os “direitos de liberdade”, quer os “direitos sociais”) é tão bem compreendido e respondido por qualificadas personalidades portuguesas e, simultaneamente, vem permanecendo por tanto tempo mal resolvido nas nossas políticas governamentais. E como é possível entender que a uma luta tão viva (uma das mais vivas) na Assembleia Constituinte, sobre as liberdades de ensino, depois prolongada nas primeiras revisões constitucionais — que, finalmente, deram a Portugal uma “Constituição Educativa” personalista, liberal e democrática —, se tenha seguido uma apatia partidária e civil perante as políticas educativas de sucessivos governos, que não respeitam a nova “Constituição Educativa” e continuam a seguir políticas jacobinas de Estado-educador?

4. Deixo esta interrogação aos estimados leitores. Mas recordando-lhes o que escreveu uma extraordinária e marcante personalidade feminina do séc. XX,  Hannah Arendt (1906 – 1975): «O objectivo da educação totalitária nunca foi incutir convicções, mas sim destruir a capacidade pessoal de livremente se formar alguma». Por mim, e agora aqui, limitar-me-ei a uma (breve) crítica à argumentação que tem pretendido iludir a inconstitucionalidade das nossas políticas públicas educativas.

5. Como se sabe, os defensores do monopólio estatal do ensino escolar argumentam sempre e só com o art. 75.º da Constituição, que diz assim, no n.º 1: «O Estado criará uma rede de estabelecimentos públicos que cubra as necessidades de toda a população». Ora, esta disposição normativa apenas impõe ao Estado a obrigação instrumental de criar uma “rede escolar”. Mas a Lei de Bases do Sistema Educativo integra expressamente a rede escolar no que chama de «recursos materiais» do «sistema educativo». No seu capítulo quinto, conceitua como “recursos materiais” os edifícios escolares, a rede escolar, outros recursos materiais (como manuais, bibliotecas, equipamentos laboratoriais, oficinas) e, finalmente, o financiamento da educação (cf. arts. 37.º a 42.º da LBSE). E isto tem de ser entendido à luz das definições que a mesma Lei de Bases estabelece, logo no seu art. 1.º, onde faz  a distinção entre “estruturas e acções educativas”, as quais — diz expressamente a Lei — podem ser diversificadas e por iniciativa e responsabilidade de diferentes instituições e entidades públicas, particulares e cooperativas. Manifestamente, portanto, a criação de estabelecimentos escolares não é monopólio do Estado e é apenas criação de estruturas educativas; e não é ainda, por si mesma, acção educativa. E a prova definitiva é que a mesma Constituição que obriga o Estado a criar escolas, proíbe o Estado de educar: «O Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas» (art. 43.º).

6. Em conclusão, a obrigação de o Estado criar uma rede de estabelecimentos escolares que seja suficiente para acolher todos os alunos que escolham as escolas do Estado (seria ridículo que o Estado fosse obrigado a ter uma rede com escolas vazias, para acolher vinte por cento dos alunos portugueses que de facto e de direito escolhem as escolas privadas), não lhe dá nenhum direito a um monopólio da «acção educativa»; nem dá, aos alunos das escolas estatais, um exclusivo do benefício da gratuitidade do ensino.

7. Quanto ao financiamento da educação pelo Estado, essa obrigação jurídica resulta de outras disposições constitucionais, que o não limitam às estruturas escolares estatais. A obrigação de financiamento público da educação, além de constar de instrumentos internacionais que vinculam o Estado português, está claramente consagrada no art. 74.º da Constituição, que diz assim: «Todos têm direito ao ensino com garantia do direito à igualdade de oportunidades de acesso e êxito escolar. [E acrescenta] Na realização da política de ensino, incumbe ao Estado: assegurar o ensino básico universal obrigatório e gratuito; […] estabelecer progressivamente a gratuitidade de todos os graus de ensino».

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