Não me apetece escrever sobre mais uma semana de espuma dos dias

José Manuel Fernandes
Público 22/02/2013

Com Bento XVI a Igreja mostrou que se pode ser moderna sem ir atrás do que apresenta como moderno

Senta-se o cronista em frente do computador, olha para o ecrã ainda vazio, medita um instante, e decide: não vou por aí. A semana era tentadora. Um ministro-que-já-não-devia-ser-ministro em apuros. Uma manifestação de estudantes ululantes que, invocando a liberdade de expressão, coarctou essa mesma liberdade. A recuperação obscena de hino com conotações antifascistas para combater um governo legítimo, mesmo que impopular. Uma carta à troika com a retórica de uma intervenção comicieira. A leitura das folhas de chá sobre o significado de pequenas flutuações no discurso de responsáveis europeus. Um erro de duas décimas da previsão do PIB transformado em catástrofe nacional. Um salto imprevisível no número de desempregados discutido sem um minuto de atenção ao que poderá ter sucedido de diferente no último trimestre do ano passado para isso suceder. E por aí adiante.
Mas não, pois confesso muito cansaço e algum tédio com todos estes debates que se sucedem, sem grandes novidades, sem novos argumentos, com muita emoção e pouca razão. Fazem-me descrer mais das elites que se consomem neste rodopio e dos que alimentam tanto fogo-fátuo que depois se encandeiam na sua própria luz. Quarta-feira, por exemplo, passei o dia a ouvir e a ler notícias sobre a Grândola que teria sido cantada a Paulo Macedo. À noite vi a reportagem numa das televisões, e fiquei esclarecido. Num auditório cheio de pessoas que queriam ouvir e interrogar o ministro sobre o SNS para lá de 2014, uma meia dúzia de indivíduos, de punho no ar, interromperam a sessão perante a indiferença incomodada de todos os restantes. Mesmo assim o incidente encheu as rádios e os online, ofuscando tudo o mais que teria sido discutido naquela sessão - as mesmas rádios e onlines cheios onde se critica a ausência de informação sobre as reformas ou de debate com a sociedade civil. Por mim, chega. Há mais vida pala além deste saltitar constante entre emoções e "grândolas virais". O mundo não se transforma radicalmente todos os dias, como nos é dado a entender, mas o mundo não deixa de estar a mudar.
É por isso que me interessa mais a renúncia de Bento XVI.
Quando fui surpreendido pelo gesto que fará de Bento XVI outra vez Joseph Ratzinger, a minha primeira reacção foi a de que era um gesto profundamente moderno. Mais: que a decisão do Papa era coerente com um pontificado que, se lhe quisermos encontrar uma lógica profunda, fica marcado pela luta pela modernidade - e contra essa sua inimiga que é a pós-modernidade.
Fazia todo o sentido para um João Paulo II, um Papa místico e que se salvara miraculosamente de um atentado, manter-se no seu lugar mesmo em grande sofrimento, mesmo cumprindo penosamente os seus deveres, dando com isso mais uma prova de coragem física mesmo na velhice. Da mesma forma faz todo o sentido que Bento XVI, um Papa que fez do casamento entre a Fé e a Razão a motivação do seu mandato, renuncie ao perceber, racionalmente, que daqui por diante a Medicina lhe iria prolongar a vida sem lhe devolver a energia que sentia necessária à missão. Teve por isso a coragem moral de renunciar.
Está a fazê-lo reafirmando, nas suas últimas homílias e orações, algumas das linhas de força do seu papado - nomeadamente ao denunciar, na última oração do Angelus, as tentações que atraem o homem para a ilusão de um falso bem -, mas fê-lo sobretudo ao ter fincado bem as raízes da Igreja na sua Doutrina, e esta na mensagem e no exemplo de um homem, Jesus Cristo. Ele reforçou um discurso da Igreja que, como notava D. Manuel Clemente, bispo do Porto, numa entrevista a propósito da sua eleição, tinha vindo a evoluir para se tornar mais "cristocêntrico", ou seja, um discurso que "aquilo que propõe não provém de uma ideologia abstracta, mas do exemplo de um homem".
João Paulo II, com a encíclica Veritatis Splendor, já apelara à racionalidade como elemento indispensável da Fé, mas Bento XVI incorporou essa racionalidade de forma plena, fazendo do diálogo entre Fé e Razão uma questão central da sua mensagem - tão ou mais central quanto o Papa sente que a batalha mais importante da Igreja se trava numa Europa descristianizada. Fez da racionalidade o terreno comum onde podia dialogar com os não crentes - fizera-o em polémicas com Habemas e Flores d"Arcais ainda bispo, fê-lo como Papa em intervenções tão importantes como a que preparou para ser lida na Universidade La Sapienza - e, também, onde podia conversar com os crentes de outras religiões - como no famoso discurso em Ratisbona. A racionalidade foi também o seu ponto de partida contra o relativismo: "O relativo não é moderno, é pós-moderno, é a factura que se está a pagar às grandes desilusões do século XX", como antecipou D. Manuel Clemente. Aos cardeais, antes da eleição, o ainda Joseph Ratzinger tinha notado que "o relativismo, isto é, o deixar-se levar "para aqui ou para ali por qualquer vento ou doutrina" parece a única atitude aceitável nos tempos que correm", pelo que "toma corpo uma ditadura do relativismo que não reconhece nada como definitivo e que deixa tudo ao critério do próprio ego e dos seus desejos".
Com Bento XVI a Igreja mostrou que se pode ser moderna sem ir atrás do que apresenta como moderno mas, muitas vezes, não passa de uma moda. A sua primeira encíclica, Deus Caritas Est, é nesse domínio um documento notável quer ao abordar a plenitude do amor erótico, afirmando que "se o homem aspira a ser somente espírito e quer rejeitar a carne como uma herança apenas animalesca, então espírito e corpo perdem a sua dignidade", quer ao defender a ideia da caridade cristã sem renegar o papel social dos Estados modernos.
O Papa prosseguiu sempre este caminho com a determinação de "não se vergar perante a ditadura das opiniões, mas antes agir a partir do conhecimento interior, ainda que isso traga aborrecimentos", como ele próprio disse. Mas como homem da Doutrina, que também era, provavelmente o melhor e o mais culto de todos, Bento XVI era capaz de distinguir o essencial do acessório e, por isso, deu alguns passos seguros. A sua resignação, que é também uma demonstração de humildade e uma chamada de atenção para a condição humana de um Papa - e para a "condição humana" da Igreja -, tem mesmo força suficiente para um dia nos fazer recordar o velho teólogo a quem todos prognosticaram um papado que não ficaria na História.
Não sendo crente, aquilo que me interessa e me interpela em Bento XVI é precisamente a sua capacidade de olhar para a sociedade contemporânea de uma forma que é moderna sem ter perdido as referências da tradição e os ensinamentos da experiência.
Em contrapartida não me interessaria, e estou certo que não interessaria aos crentes, uma Igreja mimética e submetida às novas regras das opiniões dominantes nos espaços públicos. Aprecio critérios diferentes, não estou disponível para aceitar a ideia de que os únicos critérios válidos são os definidos pelas maiorias, uma ideia que Bento XVI também combateu com energia. Não me interessam as verdades únicas, mas interessa-me a ideia de que "o homem tem de procurar a verdade", pois "ele é capaz da verdade". Tal como me interessa a ideia de que praticar a tolerância não é contraditório com promover "valores constantes que fizeram grande a humanidade".
Num terreno mais concreto, mais próximo da nossa realidade, interessam-me as reflexões de Bento XVI sobre os limites do progresso e a ideia de que, para conseguirmos ter um planeta sustentável, devemos estar preparados para a renúncia a alguns bens materiais, o mesmo é dizer bens de consumo. Ou ainda a sua preocupação, ambiental e económica, mas fundada em motivações éticas, com este nosso "viver à custa das gerações vindouras", algo que é tanto verdade para o esgotamento de recursos naturais como para a acumulação de dívidas pelos Estados.
Não espero da Igreja, deste Papa ou do próximo, soluções concretas para os nossos problemas concretos, não espero que façam coro com os nossos credores ou com as nossas dores, mas espero muito daquilo que encontrei sempre que li Bento XVI: um olhar moderno ancorado numa Tradição e numa Doutrina, um olhar corajosamente avesso à facilidade e à tentação da popularidade.

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