A vida humana, afinal, é violável
João César das Neves
DN 2007.04.16
É oficial: em Portugal a vida humana é violável. Continua em vigor o artigo 24.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, que afirma taxativamente: "A vida humana é inviolável." Mas, com a promulgação do decreto da Assembleia n.º 112/X de "exclusão da ilicitude nos casos de interrupção voluntária da gravidez", a vida humana passou a ser violável. É apenas durante as primeiras dez semanas de particular fragilidade. Mas é indiscutivelmente vida humana e é inegavelmente violável.
Vale a pena lembrar que, durante a enorme discussão à volta do referendo recente, ninguém respeitável se atreveu a dizer que o zigoto, embrião ou feto não constituíssem vida humana. Alguns fizeram grandes esforços para afirmar não se tratar de uma "pessoa humana". Dado ser um conceito filosófico, é susceptível de enormes discussões. Mas não foi possível recusar o facto cientificamente demonstrado de que se trata de uma vida, nem a evidência de senso comum que é humana. Aquilo que se vai poder violar, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mãe, é indubitavelmente uma vida humana.
Assim o nosso ordenamento jurídico passará a incluir um diploma que diz que a vida humana é violável. Não parece levantar preocupação a flagrante inconsistência lógica entre um decreto da Assembleia da República e a Constituição da República que a mesma jurou cumprir e defender. A não ser que se tome como manifestação dessa preocupação o excessivo aparato democrático de que essa Assembleia se procurou revestir para justificar a inconsistência.
O referido decreto baseia-se num referendo com 59,25% de aprovação (apesar de isso só representar 26% dos eleitores) e uma votação parlamentar largamente maioritária. Ninguém desconfia, pois, dos pergaminhos eleitorais dessa legislação. Parece que, desde que existam maiorias suficientes, passa a ser aceitável proclamar incongruências lógicas. Parece que, se a maioria quiser, pode violar-se a vida humana.
Passado o processo legislativo (a menos de alguns recursos) ficará o juízo da História. E esse pode ser muito severo. A nossa geração, impiedosa com as épocas passadas e as suas violações da vida e dignidade humanas, sabe isso muito bem. A nossa geração, que proclamou direitos, instituiu tribunais, condenou culturas, regimes, povos, conhece bem a dureza desse juízo.
A gravidade de uma atrocidade não depende da legitimidade do documento ou da representatividade do seu apoio. No passado, muitas abominações, da escravatura e guerra ao genocídio, também gozaram de toda a legitimidade institucional, consenso social e adesão entusiástica. Isso não só não desculpou mas até suscitou censura maior. Não é por isso que deixam de ser hoje repudiadas violentamente. Esta nossa lei não conduz a práticas comparáveis às dos nazis, esclavagistas, chauvinistas e afins. Mas com elas tem em comum precisamente este ponto: considerar a vida humana violável. E são repudiadas por nós por causa disso mesmo. Foi essa a razão porque se pôs na Constituição o princípio que agora corrompemos.
Quando a História julgar esta geração pelos seus crimes, lembrará os nomes inscritos no decreto que promoveu esta infâmia. Estarão lá os nomes de quem o elaborou, propôs, aprovou e promulgou. Mas também lá estará a assinatura de quem fez campanha a seu favor, quem votou, aplaudiu e exultou com ele. Aqueles que consideraram este atropelo à vida humana como um direito, os sicofantas que inventaram argumentos, congeminaram embustes e manipularam a verdade para encontrar justificações falaciosas. Os que apenas lavaram as mãos. Todos têm o nome inscrito neste diploma.
Chegámos ao fim de uma das mais longas e controvertidas epopeias parlamentares. A questão real só agora começará. Será preciso adaptar o sistema de saúde e lidar com milhares de dramas pungentes. Mas acabou o entusiasmo, ruído, balbúrdia, argumentação, interesse dos políticos. O que ficou foi apenas um ponto muito simples: a partir de agora em Portugal a vida humana é violável.
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