Vida com "ketchup"
João César das Neves
DN 20020916
Hoje, é difícil saborear a vida. A sociedade mergulha-nos numa torrente tão avassaladora de interpelações, seduções e tentações que perdemos de vista a simples vida comum. Habitar nas nossas cidades significa ser permanentemente solicitado, agarrado e percutido pelos gritos de notícias, cartazes, discursos, manchetes, anúncios, concursos, ofertas, oportunidades, etc., etc. Uma tal enxurrada de estímulos acaba por nos toldar a sensibilidade.
A intensidade de informações e intimações que bombardeiam o homem contemporâneo é sem par na História. O frenesim da comunicação social, o fascínio da arte, o alvoroço da publicidade, o folclore da política, a omnipresença do divertimento, até a extravagância da moda constituem exigências permanentes sobre a nossa atenção a que não se consegue ser alheio. Quando é impossível realizar uma operação tão simples como comprar um sabonete sem suportar mensagens libidinosas, ou entrar num autocarro sem receber fascinantes ofertas comerciais, a vida está muito estranha. Mas essa é a nossa condição habitual, sem já darmos conta.
Os estímulos, ansiosos por obter a nossa atenção (por razões económicas, políticas, artísticas, etc.), têm de apelar aos elementos mais baixos e veementes do ser humano: a adrenalina, o sexo, o susto, o orgulho, o prazer. Nas nossas cidades sofisticadas, berra continuamente a voz do instinto mais animalesco.
Os efeitos são bem visíveis nos jovens, naturalmente mais sensíveis e vulneráveis, e manifestam-se através de uma inflação explosiva de tédio. A classificação mais usada por eles é a de "seca". Não há pachorra para as coisas normais da vida. À primeira vista, esta opinião parece vir de uma reflexão, mas em breve se nota que a questão está não no objecto, mas no sujeito. Eles são, de facto, incapazes de apreciar uma enorme parte da beleza do mundo.
Este problema está longe de ser apenas dos jovens. Todos nós sentimos o terrível fastio sistémico. Habituados a uma alta intensidade de estímulo, a nossa sensibilidade embotou relativamente a múltiplos aspectos da realidade. As consequências estão à vista. Quase desapareceram as conversas, os passeios, os jogos de salão, substituídos pela televisão, videojogos e desportos. Ignoram-se as mais belas obras da humanidade. Não se lê Victor Hugo (quanto mais Cervantes ou Aristóteles?), porque lhe faltam os inevitáveis monstros, vampiros e mágicas. Não se aprecia Gershwin (quanto mais Beethoven ou Bach?), por ausência dos decibéis frenéticos e ritmados. Não se compreende Rodin (quanto mais Rembrandt ou Miguel Ângelo?), por ausência de mensagens agressivas de cartaz. Não se liga à estética de Coppola (quanto mais ao preto e branco de Capra ou Hitchcock?), por moderação nos efeitos especiais, sangue e sexo. Acusar o sistema desta situação é fuga às responsabilidades. O sistema oferece em grande profusão Hugo e Aristóteles, Rodin e Rembrandt, Coppola e Beethoven. O que falta não é acesso. É paciência. Perdemos a sensibilidade para o sofisticado.
O aborrecimento total é o mesmo que o de Jacinto de A Cidade e as Serras (livro sem violência e sex appeal). Mas mais boçal. Os cem anos desde a novela póstuma de Eça serviram para popularizar a maçada paralisante do meu Príncipe. E reduzir as serras redentoras.
Já está tudo visto. Nada admira. Tudo maça. A não ser o superlativo. Daí a espiral de provocação em que têm de embarcar anúncios, concursos, entretenimentos, até notícias. Tudo dispara para o insólito, só para manter as audiências. Há já tempos que o obsceno é banal. Chegámos ao momento em que só resta o cruel, o selvagem, o perverso.
É corrente prever daqui as consequências mais funestas, da doença psíquica à decadência dos costumes. Temem-se os aspectos viciantes e a manipulação económica, a promoção dos medíocres e a desorientação de critérios, a injustiça social e degradação moral. Esses medos são, de facto, muito exagerados. A natureza humana tem grande capacidade de adaptação. A sociedade actual, apesar de tudo, não se mostra mais neurótica e desequilibrada que as anteriores (é bom lembrar muito das anteriores). Nós vivemos sem susto em ambientes que poriam em pé os cabelos dos nossos avós. Já se passara o mesmo com os avós deles. Temos, é verdade, novos e graves males, mas libertámo-nos de outros. E, afinal, a culpa deles não vem só daqui, pois os factores contributivos são miríade.
O principal problema desta situação não é, pois, moral, económico ou político. É espiritual. A consequência dos excessos é o embotar dos sentidos, impedindo de viver a vida em pleno. Passamos o tempo num mundo de ilusão embriagante. Perdemos o equilíbrio e a finalidade. Vivemos o dia-a-dia como aqueles que encharcam a refeição com temperos, maionese, mostarda ou caril. Toda a comida lhes sabe ao mesmo. Se não tivermos cuidado, os estímulos baratos levam-nos a viver intensamente, mas com a vida a saber a ketchup.
naohaalmocosgratis@vizzavi.pt
A intensidade de informações e intimações que bombardeiam o homem contemporâneo é sem par na História. O frenesim da comunicação social, o fascínio da arte, o alvoroço da publicidade, o folclore da política, a omnipresença do divertimento, até a extravagância da moda constituem exigências permanentes sobre a nossa atenção a que não se consegue ser alheio. Quando é impossível realizar uma operação tão simples como comprar um sabonete sem suportar mensagens libidinosas, ou entrar num autocarro sem receber fascinantes ofertas comerciais, a vida está muito estranha. Mas essa é a nossa condição habitual, sem já darmos conta.
Os estímulos, ansiosos por obter a nossa atenção (por razões económicas, políticas, artísticas, etc.), têm de apelar aos elementos mais baixos e veementes do ser humano: a adrenalina, o sexo, o susto, o orgulho, o prazer. Nas nossas cidades sofisticadas, berra continuamente a voz do instinto mais animalesco.
Os efeitos são bem visíveis nos jovens, naturalmente mais sensíveis e vulneráveis, e manifestam-se através de uma inflação explosiva de tédio. A classificação mais usada por eles é a de "seca". Não há pachorra para as coisas normais da vida. À primeira vista, esta opinião parece vir de uma reflexão, mas em breve se nota que a questão está não no objecto, mas no sujeito. Eles são, de facto, incapazes de apreciar uma enorme parte da beleza do mundo.
Este problema está longe de ser apenas dos jovens. Todos nós sentimos o terrível fastio sistémico. Habituados a uma alta intensidade de estímulo, a nossa sensibilidade embotou relativamente a múltiplos aspectos da realidade. As consequências estão à vista. Quase desapareceram as conversas, os passeios, os jogos de salão, substituídos pela televisão, videojogos e desportos. Ignoram-se as mais belas obras da humanidade. Não se lê Victor Hugo (quanto mais Cervantes ou Aristóteles?), porque lhe faltam os inevitáveis monstros, vampiros e mágicas. Não se aprecia Gershwin (quanto mais Beethoven ou Bach?), por ausência dos decibéis frenéticos e ritmados. Não se compreende Rodin (quanto mais Rembrandt ou Miguel Ângelo?), por ausência de mensagens agressivas de cartaz. Não se liga à estética de Coppola (quanto mais ao preto e branco de Capra ou Hitchcock?), por moderação nos efeitos especiais, sangue e sexo. Acusar o sistema desta situação é fuga às responsabilidades. O sistema oferece em grande profusão Hugo e Aristóteles, Rodin e Rembrandt, Coppola e Beethoven. O que falta não é acesso. É paciência. Perdemos a sensibilidade para o sofisticado.
O aborrecimento total é o mesmo que o de Jacinto de A Cidade e as Serras (livro sem violência e sex appeal). Mas mais boçal. Os cem anos desde a novela póstuma de Eça serviram para popularizar a maçada paralisante do meu Príncipe. E reduzir as serras redentoras.
Já está tudo visto. Nada admira. Tudo maça. A não ser o superlativo. Daí a espiral de provocação em que têm de embarcar anúncios, concursos, entretenimentos, até notícias. Tudo dispara para o insólito, só para manter as audiências. Há já tempos que o obsceno é banal. Chegámos ao momento em que só resta o cruel, o selvagem, o perverso.
É corrente prever daqui as consequências mais funestas, da doença psíquica à decadência dos costumes. Temem-se os aspectos viciantes e a manipulação económica, a promoção dos medíocres e a desorientação de critérios, a injustiça social e degradação moral. Esses medos são, de facto, muito exagerados. A natureza humana tem grande capacidade de adaptação. A sociedade actual, apesar de tudo, não se mostra mais neurótica e desequilibrada que as anteriores (é bom lembrar muito das anteriores). Nós vivemos sem susto em ambientes que poriam em pé os cabelos dos nossos avós. Já se passara o mesmo com os avós deles. Temos, é verdade, novos e graves males, mas libertámo-nos de outros. E, afinal, a culpa deles não vem só daqui, pois os factores contributivos são miríade.
O principal problema desta situação não é, pois, moral, económico ou político. É espiritual. A consequência dos excessos é o embotar dos sentidos, impedindo de viver a vida em pleno. Passamos o tempo num mundo de ilusão embriagante. Perdemos o equilíbrio e a finalidade. Vivemos o dia-a-dia como aqueles que encharcam a refeição com temperos, maionese, mostarda ou caril. Toda a comida lhes sabe ao mesmo. Se não tivermos cuidado, os estímulos baratos levam-nos a viver intensamente, mas com a vida a saber a ketchup.
naohaalmocosgratis@vizzavi.pt
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