Um livro esquecido

João César das Neves
DN, 20020930
Uma das obras mais importantes da cultura ocidental está hoje praticamente esquecida. Além da volumosa perda civilizacional, o pior são as razões do desaparecimento, que manifestam uma grave desorientação do nosso tempo. Diz-se que a Legenda Aurea foi o livro mais lido no século XIV depois da Bíblia. Ele era, sem dúvida, imensamente popular e manteve--se assim nos séculos seguintes. O seu autor, Jacobo de Voragine (1230-1298), arcebispo de Génova beatificado em 1816, compilou as vidas dos santos do calendário romano de forma elegante, singela e sintética. Este conjunto de 182 pequenas histórias de santidade, do heróico ao humilde, do enternecedor ao empolgante, constitui sem qualquer dúvida uma sublime obra literária. Num tempo como o nosso, fascinado pela aventura, emoção e extraordinário, este livro parece feito à medida. Mais intenso que Indiana Jones, mais surpreendente que O Senhor dos Anéis, mais variado que Harry Potter, mais misterioso que as Star Wars, a Legenda tem tudo para agradar às audiências. A coragem dos mártires, a surpresa dos milagres, o heroísmo das virtudes; princesas, dragões, demónios e tiranos, santos e pecadores, tudo lá aparece. Conhecemos também a vida dos famosos, como a de Nossa Senhora e Madalena depois da Ressurreição, os actos dos Apóstolos após os Actos, a origem de Judas e da Santa Cruz, etc. Tudo isto numa obra de imenso interesse histórico e artístico, alto valor literário, moral e cultural. A grande maioria da arte sacra, vitrais, frescos, poemas, e até os nomes de terras e locais, só são compreensíveis com base neste livro, onde se inspiraram milhares de artistas e autores. Formando a cultura, a estética, a consciência e o carácter dos leitores, tudo o recomenda para as nossas estantes. Mas, após séculos de intensa leitura, a Legenda Aurea quase desapareceu no século XIX. Ficou por fazer a indispensável edição crítica. Sem o texto estabelecido cientificamente, as edições são poucas e de qualidade variável. Está acessível em cuidada tradução inglesa na Princeton University Press, francesa na GF--Flammarion, entre outras. Em português nada. Porquê? O cientifismo triunfante montou nos últimos 200 anos talvez o ataque mais feroz e implacável que a religião alguma vez suportou. Alegando-se detentora da verdade indiscutível, a ciência desafiou abertamente a fé, em particular a cristã, com a acusação de ficção mítica e fabulosa. A resposta foi simples. O cristianismo aceitou o desafio e tornou-se a crença mais estudada, analisada e esquadrinhada de sempre. A História, Arqueologia, Antropologia, Linguística, até a Física e Química, foram usadas para pôr em causa os factos e afirmações da Igreja. As descobertas e resultados desses estudos foram excelentes. Mas, se teve efeitos muito interessantes, o esforço gerou algumas perdas significativas. A busca do rigor e demonstração na fé apagou a espontaneidade, a devoção, a arte. Desde o ataque furioso dos cientifistas, os cristãos passaram a tomar uma atitude de acanhamento, quase vergonha. Alvos de permanente discussão e dúvida, os crentes habituaram-se a justificar-se, a pedir licença para falar, a prestar vassalagem à cultura dominante. As consequências foram drásticas. No tempo que mais exterioriza os sentimentos, desapareceram as procissões, as penitências públicas e manifestações de fé. No tempo da promoção da arte, a liturgia empobreceu e escondeu-se a arte sacra. No tempo das convicções, partidos e manifestações, apenas a Igreja faz cerimónia. Há liberdade para se dizer o que se quiser, mas afirmar um princípio religioso é subjectivo e arbitrário, remetido para a intimidade. As asneiras são livres, até arrogantes; só a devoção é tímida. Foi esta a causa do esquecimento da Legenda Aurea. Ninguém duvida que o livro mistura narrativas verdadeiras com contos fabulosos. No esforço de demonstrar a verdade histórica do cristianismo, ele foi um dos primeiros sacrificados. A perda foi injusta, além de insubstituível. O autor tinha consciência do problema e fez o possível para o corrigir. O volume não é um conjunto de mitos («legenda» não significa «lendas» mas «leituras», do verbo latino «legere», ler). Está ordenado pelo calendário, celebrando cada santo na sua festa e incluindo capítulos sobre Advento, Epifania, Paixão, Todos os Santos, etc. Constitui, portanto, um livro paralitúrgico, revelando ao povo a personalidade celebrada em cada dia. O autor tem também um cuidado extremo em indicar as suas fontes, para evitar falsificações. E, quando cita um episódio um pouco mais incrível, ele próprio refere a sua dúvida. Trata-se pois de uma obra séria e respeitável, onde abundam os elementos hagiográficos de devoção popular. Esse é precisamente o seu valor. A fé não é apenas acreditar no Credo, seguir os Mandamentos, rezar o Pai-Nosso. É também viver a Legenda Aurea. Pobre a geração que a despreza.

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