Um padre
João César das Neves
DN, 20031117
Já não se publicam sermões.
Depois de os padres terem passado no século XIX à categoria de ervas daninhas, abandonou-se o hábito de publicar sermões. Assim se perde para sempre um dos fenómenos culturais mais influentes da nossa língua.
Todos os dias, em milhares de locais, se prega em Portugal sobre o sentido da vida, os juízos morais, as virtudes práticas.
Este grandioso património evapora-se, enquanto os etnógrafos se esforçam, por outros lados, a recolher os menores indícios do que chamam «cultura».
Mas, felizmente, ainda há excepções.
Acaba de sair um volume de homilias de um sacerdote lisboeta (Directo ao Assunto, Lucerna, 2003).
O Padre João Seabra é uma figura conhecida da nossa intelectualidade. Mas o que ele é, é sempre e apenas como padre.
A sua fama provém sobretudo da sua frontalidade. Num tempo em
que a Igreja se sente minoritária, às vezes acossada e complexada, o Padre Seabra nunca pediu desculpa por ser quem é ou licença para se meter na vida de quem encontra.
Conheço muitos padres santos, fervorosos e cativantes. Mas com a sua «desfaçatez na Fé» só sei de outro, um polaco chamado Karol Wojtyla.
Os sermões deste livro não são habituais.
Primeiro são curtos. Depois são muito coloridos, com humor e actualidade. Em terceiro lugar são desarmantes.
Citam no mesmo fôlego a Astrofísica e a Inquisição (p. 81), Gore Vidal e S. Ambrósio (p. 89), S. Pedro e Krushchev (p. 107), Loretta Young e o bom samaritano (p. 201-202).
Os temas são muitos, mas o assunto é sempre o mesmo. Em todo o livro se sente a sua linha condutora: uma paixão intensa numa fidelidade férrea pela pessoa de Cristo e pela vida da Igreja. Com exemplos divertidos e sínteses iluminantes, o autor vai sempre directo ao assunto. E o assunto é sempre a Fé. O livro é, pois, uma notável mistura de catecismo, geopolítica, moral prática e história. Na clareza da argumentação, na contundência das comparações, sente-se o que tanto foi repetido nos milénios da Igreja: «Vieram para discutir, mas era-lhes impossível resistir à sabedoria e ao Espírito com que ele falava» (Act 6, 9-10).
No meio aparecem frases brilhantes, tiradas geniais que não esquecem: «Toda a moralidade cristã se reduz a isto. Usar todas as coisas tomando nota da Luz da qual são feitas» (p. 125). «Porque quem resolve, nos momentos decisivos, pensar só pela sua cabeça acaba por pensar pela cabeça da opinião comum» (p. 190). «Para se renunciar à santidade é precisa uma disciplina de ferro, porque a santidade oferece-se a nós todos os dias»(p. 210). «Misteriosamente, os que estão no Inferno não estão lá presos. Estão lá porque não querem sair de lá (...) o seu castigo é esse ódio eterno ao bem» (p. 272). «A Europa é o nariz da Ásia. Se a Ásia se assoa, a Europa desaparece. (...) A Europa é o Cristianismo ou não é nada» (p. 277). «Meus amigos, meus irmãos, vivei cada instante como se fosse o primeiro instante, como se fosse o último instante, como se fosse o único instante» (p. 211).
É assim o autor. É assim este livro.À questão principal, ele mesmo respondeu logo na sua primeira missa: «O bom gosto do nosso mundo perguntará, escandalizado, se eu me considero, então, detentor da única verdade. E eu respondo que não. Não sou detentor da verdade. Mas sou detido por Ela, sou possuído, conduzido, impelido e guiado por Ela. Não sou senhor da verdade, mas sou servo da Verdade» (p. 13).
naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt
DN, 20031117
Já não se publicam sermões.
Depois de os padres terem passado no século XIX à categoria de ervas daninhas, abandonou-se o hábito de publicar sermões. Assim se perde para sempre um dos fenómenos culturais mais influentes da nossa língua.
Todos os dias, em milhares de locais, se prega em Portugal sobre o sentido da vida, os juízos morais, as virtudes práticas.
Este grandioso património evapora-se, enquanto os etnógrafos se esforçam, por outros lados, a recolher os menores indícios do que chamam «cultura».
Mas, felizmente, ainda há excepções.
Acaba de sair um volume de homilias de um sacerdote lisboeta (Directo ao Assunto, Lucerna, 2003).
O Padre João Seabra é uma figura conhecida da nossa intelectualidade. Mas o que ele é, é sempre e apenas como padre.
A sua fama provém sobretudo da sua frontalidade. Num tempo em
que a Igreja se sente minoritária, às vezes acossada e complexada, o Padre Seabra nunca pediu desculpa por ser quem é ou licença para se meter na vida de quem encontra.
Conheço muitos padres santos, fervorosos e cativantes. Mas com a sua «desfaçatez na Fé» só sei de outro, um polaco chamado Karol Wojtyla.
Os sermões deste livro não são habituais.
Primeiro são curtos. Depois são muito coloridos, com humor e actualidade. Em terceiro lugar são desarmantes.
Citam no mesmo fôlego a Astrofísica e a Inquisição (p. 81), Gore Vidal e S. Ambrósio (p. 89), S. Pedro e Krushchev (p. 107), Loretta Young e o bom samaritano (p. 201-202).
Os temas são muitos, mas o assunto é sempre o mesmo. Em todo o livro se sente a sua linha condutora: uma paixão intensa numa fidelidade férrea pela pessoa de Cristo e pela vida da Igreja. Com exemplos divertidos e sínteses iluminantes, o autor vai sempre directo ao assunto. E o assunto é sempre a Fé. O livro é, pois, uma notável mistura de catecismo, geopolítica, moral prática e história. Na clareza da argumentação, na contundência das comparações, sente-se o que tanto foi repetido nos milénios da Igreja: «Vieram para discutir, mas era-lhes impossível resistir à sabedoria e ao Espírito com que ele falava» (Act 6, 9-10).
No meio aparecem frases brilhantes, tiradas geniais que não esquecem: «Toda a moralidade cristã se reduz a isto. Usar todas as coisas tomando nota da Luz da qual são feitas» (p. 125). «Porque quem resolve, nos momentos decisivos, pensar só pela sua cabeça acaba por pensar pela cabeça da opinião comum» (p. 190). «Para se renunciar à santidade é precisa uma disciplina de ferro, porque a santidade oferece-se a nós todos os dias»(p. 210). «Misteriosamente, os que estão no Inferno não estão lá presos. Estão lá porque não querem sair de lá (...) o seu castigo é esse ódio eterno ao bem» (p. 272). «A Europa é o nariz da Ásia. Se a Ásia se assoa, a Europa desaparece. (...) A Europa é o Cristianismo ou não é nada» (p. 277). «Meus amigos, meus irmãos, vivei cada instante como se fosse o primeiro instante, como se fosse o último instante, como se fosse o único instante» (p. 211).
É assim o autor. É assim este livro.À questão principal, ele mesmo respondeu logo na sua primeira missa: «O bom gosto do nosso mundo perguntará, escandalizado, se eu me considero, então, detentor da única verdade. E eu respondo que não. Não sou detentor da verdade. Mas sou detido por Ela, sou possuído, conduzido, impelido e guiado por Ela. Não sou senhor da verdade, mas sou servo da Verdade» (p. 13).
naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt
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