«Habemus Papa»

Expresso, 2003-11-08
PARA lá do sensacionalismo repetitivo e do alarmismo enfadonho a que a informação televisiva nos habituou, chamou a minha atenção o modo, tão típico do nosso tempo, como o recente agravamento do estado de saúde de João Paulo II foi abordado pelo telejornais.
Inicialmente havia, no relato das notícias, um tom subliminar de quase escândalo, como se a doença do Papa viesse demonstrar que a Igreja era imperfeita e que afinal o Papa não era divino, era um mortal como os outros. As perguntas sobre os assuntos aos altos dignitários da Igreja eram feitas com a pouco segura e usual agressividade, como se a súbita constatação de que o Papa poderia morrer viesse destapar uma carapuça, revelar que a mensagem de eternidade que a Igreja transmitia era afinal publicidade enganosa.
A coincidência com a comemoração do 25º aniversário da eleição de João Paulo II acabou por dar outra perspectiva aos noticiários, passando-se aos balanços, um pouco em tom final, do seu pontificado, intervalados com vácuas especulações sobre o seu sucessor e o que este teria de fazer para satisfazer a clientela e adaptar a fé ao gosto dos fiéis.
A ocasião forneceu contudo apreciações mais profundas do percurso de um dos mais marcantes protagonistas das mudanças que se deram nos finais do século XX, mas também e, sobretudo, de um dos mais afirmativos chefes da Igreja Católica de todos os tempos.
Sublinhou-se a sua luta pela liberdade, no combate a um regime que aguilhoava os povos, sacrificados a mais um mito redentor, desta vez pseudo-científico. Elogiou-se a sua obstinada e generosa defesa da dignidade do Homem, em todas as situações, sem desculpas e sem excepções. Louvou-se a denúncia das injustiças sociais, a coragem na oposição à violência.
Registou-se a dificuldade em classificá-lo segundo os parâmetros convencionais, apontando-se a sua experiência política, o progressismo social e o conservadorismo doutrinário, afinal uma forte afirmação de coerência. Ele é o homem que combateu o comunismo em nome da liberdade; que luta pelos oprimidos e humildes contra os fortes e prepotentes; que não hesitou em atribuir à intervenção divina a sua salvação do atentado que o vitimou num dia 13 de Maio; que escolheu as comemorações do seu jubileu de prata para beatificar a figura, tão ilustrativa das insuportáveis injustiças da sociedade moderna, e a que o seu pontificado tanto se identifica, da Madre Teresa de Calcutá. Ele não cedeu aos ventos da moda, não hesitou em proclamar a verdade da sua fé, mesmo sendo impopular - e por isso se tornou um ídolo da juventude. Como Cristo no Templo, ele veio para dividir, com a misericórdia do perdão, mas com a firmeza da fé, tão incómoda e difícil numa sociedade que se julga, no racionalismo, na ciência e - mais preocupantemente - na técnica, detentora da verdade e capaz de domesticar o mundo e a vida.
Mas todos esses comentários, certos e justos, tenderam a considerar a vida do Papa um pouco já no passado e não se terá salientado suficientemente o alcance do testemunho que, com o seu visível e angustiante sofrimento físico, está no presente a dar.
Num mundo onde, segundo a feliz frase de Chomsky - sobressaltem-se os puristas do pensamento único, li-a no «Figaro Magazine», citada por um eurodeputado gaullista - a mercantilização de todos os aspectos da vida está a criar um novo totalitarismo, onde as pessoas valem mais pelo que têm do que pelo que são, onde a condescendência própria só tem paralelo na implacável exigência com os outros, onde os valores éticos se moldam às conveniências, onde o expediente é mais apreciado que a integridade. Num mundo onde se atribui aos pobres e aos fracos o epítome de excluídos, cruelmente apropriado porque a sociedade os rejeita. Num mundo, enfim, onde a doença envergonha e se esconde a morte, porque destoa do hedonismo dominante, o Papa vem afirmar, com o seu exemplo, que a dignidade humana não tem fronteiras. Persiste além da doença, além da humilhação, além do sofrimento, além da morte. Que os pobres, os humildes, os doentes, os que sofrem, dela partilham inteiramente. E que todos sem excepção se têm de resignar à condição humana.
João Paulo II sobrepõe à doença e à dor a sua força espiritual para nos transmitir este testemunho inquietante e subversivo no mundo em que vivemos, talvez o mais forte do seu Pontificado. O qual é, por isso, bem presente. Foi essa a notícia que não vi nos telejornais. Porém, a mais sensacional e alarmante.
Embaixador

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