Liberdade de Educação e Liberdade de Informação

MÁRIO PINTO
Público, Segunda-feira, 25 de Novembro de 2002


No passado dia 16, participei activamente (devo dizê-lo desde já) numa tarde inteira de comunicações e debates, que teve lugar num anfiteatro da Fundação Gulbenkian, por iniciativa do Fórum para Liberdade de Educação, recentemente constituído por um conjunto de pessoas que criticam a intolerável estatização do nosso sistema escolar e defendem, para os alunos e famílias, a liberdade de escolha da educação e, por consequência, da escola.
Fiquei surpreendido com a grande afluência de pessoas - contaram-se cerca de mil, que não couberam no anfiteatro e tiveram de assistir noutras salas através de vídeo. Concluo daí que o cansaço do monopólio de um sistema escolar estatista, que produz resultados insuportáveis, começa finalmente a gerar um activo movimento de opinião a favor de mudanças que são urgentes - e, de resto, já se estão fazendo ou preparando em outros lugares.
A comunicação social, por seu lado, pouca ou nenhuma importância noticiosa deu ao caso. Não há dúvidas: os órgãos de comunicação social fazem uma pré-selecção do que interessa ou não interessa como notícia. Os jornalistas esforçam-se por nos convencer de que são independentes. Independentes são, desde logo na sua liberdade de pré-seleccionar. Mas essa pré-selecção está indisfarçavelmente ligada a opções editoriais que são também ideológicas. Logo, independentes, sim, mas não isentas.

Esta é a natureza das coisas. Portanto, não vale a pena fazer grande questão. O ponto é outro: é que não há pluralismo. Porquê? Só vejo uma resposta: pecado de omissão de alguns.

Relendo Dostoiévski

Saiu recentemente mais uma edição do célebre romance de Dostoiévski: "Os irmãos Karamázov" (primeiro volume). Há anos que o tinha arrumado, numa velha edição francesa. Quis relê-lo e, confesso, fui direito ao tremendo episódio do Grande Inquisidor. É muito chocante, mas coloca-nos, poderosamente, perante as mais dramáticas tentações do Mal. Lá reencontrei a previsão do Grande Inquisidor, retroactivamente posta a Jesus: "Sabes ou não sabes que daqui a séculos a humanidade proclamará, pela boca da sua sabedoria e da sua ciência, que não existe o crime e que, portanto, também não existe o pecado, mas apenas existem os famintos? Dá-lhes primeiro de comer, e pede-lhes a virtude só depois."
A fome de que fala Dostoiévski é física, biológica. Talvez por isso, o autor ainda admitia que, depois de saciada a fome do corpo, se poderia exigir a virtude do espírito. Mas a fome que hoje lavra pelas nossas sociedades da Europa rica, já em grande medida libertas da fome biológica, é outra. É uma fome de sensações psíquicas e emoções bizarras, de todos os consumos e experiências "radicais", uma fome libertária, uma fome pela fome. Saciar esta fome não deixa ocasião posterior para a virtude, porque é uma fome do vício. Um exemplo da "comida" que excita essa fome é a má televisão que vamos tendo.

A degradação da televisão

Ficou célebre a opinião de reserva que, num tempo ainda precoce, em que muita gente embarcava em embriagadas visões optimistas sobre a televisão, Karl Popper emitiu sobre a televisão. Infelizmente, confirmam-se as piores expectativas. Apesar de já estarmos quase habituados ao panorama em grande parte nauseabundo das nossas programações televisivas, e de muitos de nós já terem desistido, por desolação, de insistir sobre o assunto (relembro a título de exemplo o pioneirismo de Maria de Jesus Barroso e declarações mais recentes de António Barreto, na sua coluna habitual), a indignação continua a manifestar-se inconformada. Alfredo Barroso escreveu recentemente, na sua prosa bem castigada mas quase violenta, no "Expresso" do passado dia 16, uma crítica lapidar, intitulada "um país de rabo ao léu". Com efeito! Mas o pior é que não se trata de um episódio isolado; e se verifica uma tendência que não pára (ou só parará um dia, por vómito colectivo final?).
Para colocar ao lado do programa descrito por Alfredo Barroso, li, há dias, que se tinha feito uma nova experiência televisiva: uma câmara colocada num caixão podia fornecer, durante longo tempo, um programa de televisão mostrando a decomposição de um cadáver. Li ainda, mais recentemente, que um médico alemão, que se celebrizou por apresentar esculturas feitas com corpos humanos plastificados, fez uma autópsia ao vivo para 300 pessoas e a TV, numa galeria de Londres.
E assim se vai desenvolvendo uma cultura e uma televisão de "Sodoma e Gomorra". Temos aqui um problema que vai ao âmago da questão da dignidade humana, mas também da democracia. O mercado, tão vilipendiado pelos que defendem o monopólio da educação escolar estatal, e também criticado pelos defensores dos direitos sociais contra a economia do neoliberalismo, é soberano na televisão - que de facto constitui uma rede educativa (deseducativa) e um grande negócio.
Quem, de entre alguns mestres que entre nós constantemente nos recordam a democracia e criticam o neoliberalismo, nos explica? E que dizer da apatia da nossa cultura tradicional de inspiração cristã?
A única consciência que pode andar em paz, por estes dias, é a consciência do relativismo pós-modernista, se for sincera. Pior, contudo, ainda são os mornos, aqueles que não são frios nem quentes. A esses, diz-se no Apocalipse: "Oxalá fosses frio ou quente. Assim, porque és morno, vou vomitar-te da minha boca."
Sem embargo, porém, não é com esta condenação de excomunhão que termina o Apocalipse; mas sim com a promessa esperançosa de um reencontro.  

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