Alegria não paga dívidas

Inês Teotónio Pereira, i-online 27 Out 2012 - 03:00 |
No nosso mundo alguém que se ria sem razão toma remédios. As pessoas da nossa idade (a partir dos 14) riem-se excepcionalmente 
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As crianças têm pouco sentido de humor. É certo que se riem muito, aliás riem-se por tudo e por nada: basta tapar a cara a um bebé de meses com uma fralda e dizer cu cu que ele desata a rir à gargalhada. É um sentido de humor estranho, mas uma pessoa habitua-se rapidamente (até porque os bebés fartam-se depressa e passam do riso para o choro histérico se insistirmos muito em tapar-lhes a cara mesmo que mudemos de cu cu para ca ca – o que faz mais sentido).
Mas a verdade é que as crianças não têm poder de encaixe, não são sensíveis a metáforas ou a mensagens subliminares e têm pouca subtileza. Além de que não fazem a mínima ideia do que é uma indirecta. No mundo delas é tudo brutalmente directo. Uma piada é explícita, não é soft.
Há muito poucas anedotas, além das protagonizadas pelo menino Joãozinho, que façam uma criança rir. Por exemplo, no outro dia contei uma dessas anedotas parvas e secas próprias de adultos a um dos meus filhos. O coitado resolveu contá-la na escola a um bando de crianças sem sentido de humor e veio para casa desgraçado porque ninguém percebeu a anedota. Ninguém se riu. Então, para o consolar, dei-lhe o livro do Tonecas e rendemo-nos os dois ao mundo infantil das piadas, dos trocadilhos e dos trambolhões provocados por cascas de banana – que não têm nenhum sentido de humor mas apenas o mais puro sadismo.
Sendo assim, porque é que as crianças passam o dia a rir e a gritar como se o mundo inteiro fosse uma comédia? Qual é a graça? Riem de quê?
Ora, como a maior parte das coisas que dizem respeito às crianças, também isto não faz sentido. Não tem lógica. Elas têm uma vida chata, passam o dia a receber ordens, não têm liberdade, comem couves, estão sempre a cair e a fazer feridas, não têm dinheiro, nem carro, nem casa, nem cigarros, não vão jantar fora, dormem quando não querem e acordam quando não querem. E riem-se. É estranhíssimo.
Ora eu desconfio que as crianças têm uma particularidade: são alegres por natureza. Assim como o Pateta, as crianças são naturalmente alegres. Estão naturalmente contentes todos os dias. Acordam com sono mas estão alegres; vão para escola, mas riem-se; esfolam-se violentamente mas continuam contentes. Não faz sentido, eu sei.
No nosso mundo, alguém que se ria sem razão aparente toma remédios. As pessoas da nossa idade (a partir dos 14) só se riem excepcionalmente. É preciso uma razão muito forte, como um programa de rádio fora de série, uma anedota brilhante ou uma comédia fantástica, para que o mundo seja prendado por um sorriso nosso. Não é fácil.
As pessoas crescidas e maduras como nós, por princípio, não estão alegres. Não revelamos sinais exteriores de alegria. Somos contra. Podemos ser cordiais, reservados, bem-educados, simpáticos, bem-dispostos, afáveis, amáveis, amigáveis, mas alegres é que não. Não há condições, não é a altura e raramente se proporciona. No fundo, rir é quase uma falta de respeito.
As crianças que se riam que nós tratamos do mundo. Seriamente e sempre muito sérios. Sem perder a compostura porque o assunto é sério. E como é sério, como a seriedade tem sempre qualquer coisa de velório, de preto, de formal, não fica bem rir. Se rimos muito poderá parecer que não estamos a levar o assunto a sério. A vida a sério. Porque uma coisa tem tudo a ver com a outra.
No entanto, ao contrário das crianças, nós temos sentido de humor: de manhã, durante cinco minutos, rimo--nos à gargalhada com a Mixórdia de Temáticas. Mas chega. Se a tristeza não paga dívidas, a alegria também não. E tem de se cortar em tudo: cinco minutos de riso por dia chega e sobra.

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