Nestes dias em que Deus parecia existir




Bento XVI é um homem de ideias, um intelectual, alguém cujo espaço natural é a biblioteca, a sala de aulas da universidade, o auditório das conferências. A sua timidez diante das multidões aflora de modo invencível nessa maneira quase envergonhada e quase a pedir desculpa por ter de se dirigir às massas.

Mas essa fragilidade é enganosa pois trata-se provavelmente do Papa mais culto e inteligente que a Igreja tem há muito tempo, um dos raros pontífices cujas encíclicas ou livros um agnóstico como eu pode ler sem bocejar (a sua breve autobiografia é fascinante, e os dois volumes sobre Jesus são mais que sugestivos).
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A verdade é que, ainda que perca fiéis e encolha, o catolicismo está hoje em dia mais unido, activo e aguerrido do que nos anos em que parecia a ponto de desgarrar-se e dividir-se pelas lutas ideológicas internas.

Isto é bom ou mau para a cultura da liberdade?

Enquanto o Estado for laico e mantiver a sua independência face a todas as igrejas, que deve, claro está, respeitar e permitir que actuem livremente, é bom, porque uma sociedade democrática não pode combater eficazmente os seus inimigos – começando pela corrupção –  se as suas instituições não estiverem firmemente apoiadas por valores éticos, se uma vida espiritual rica não floresce no seu seio como um antídoto permanente contra as forças destruidoras, desagregantes e anárquicas que costumam guiar a conduta individual quando o ser humano se sente livre de toda a responsabilidade.

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Durante muito tempo acreditou-se que, com o avanço dos conhecimentos e da cultura democrática, a religião, essa forma elevada de superstição, ir-se-ia desfazendo, e que a ciência e a cultura a substituiriam com vantagem.

Agora sabemos que essa era outra superstição que a realidade se encarregou de fazer em cacos.

E sabemos, também, que aquela função que os livres-pensadores novecentistas, com tanta generosidade quanta ingenuidade, atribuíam à cultura, esta é incapaz de cumprir, sobretudo agora.

Porque, no nosso tempo, a cultura deixou de ser essa resposta séria e profunda para as grandes perguntas do ser humano sobre a vida, a morte, o destino, a história, que no passado tentou ser, e transformou-se, por um lado, num divertimento ligeiro e inconsequente, e, por outro, numa cabala de especialistas incompreensíveis e arrogantes,confinados em fortalezas de gírias e palavras crípticas e a anos-luz do comum dos mortais.

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E, por mais que tantos brilhantíssimos intelectuais procurem convencer-nos de que o ateísmo é a única consequência lógica e racional do conhecimento e da experiência acumuladas pela histórica da civilização, a ideia da extinção definitiva continuará a ser intolerável pelo ser humano comum e corrente, que continuará a encontrar na fé aquela esperança de uma sobrevivência mais além da morte a que nunca pôde renunciar.

Enquanto não tomar o poder político e enquanto o poder político saiba preservar a sua independência e neutralidade diante dela, a religião não só é lícita como é indispensável numa sociedade democrática.

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Crentes e não crentes devemos alegrar-nos por isso com o que aconteceu em Madrid nestes dias em que Deus parecia existir, o catolicismo parecia ser a religião única e verdadeira, e todos como rapazes bons caminhávamos mão dada com Santo Padre em direcção ao reino dos céus.

Versão integral  em baixo: 


El Pais, 2011-08-28
A festa e a cruzada de Mário Vargas Llosa

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