Ainda sabe dividir quatro por sete? E o seu filho? , JMFernandes, Publico, 070723

Ainda sabe dividir quatro por sete? E o seu filho?
23.07.2007

O "eduquês" não desiste. A calculadora está de regresso ao ensino básico, a tabuada ou as regras da divisão ou saber tirar a "prova dos nove" ficam para depois. Sendo assim, alguém se surpreende com os maus resultados que se registam a Matemática?

Vale a pena aprender a nadar? Para quê, se há barcos e, nos barcos, há bóias?
Vale a pena aprender andar de bicicleta? Para quê, se há motas, automóveis, autocarros, comboios?...
Vale a pena aprender a ler? Para quê, se os computadores já são capazes de ler por nós e basta conhecermos o significado das palavras?
Contudo, procuramos que os nossos filhos aprendam a nadar, mesmo que não sejam pescadores. E entusiasmamo--nos quando se equilibram na bicicleta ou associam as primeiras letras.
O surpreendente é que, apesar de acharmos natural qualquer das anteriores aprendizagens, ouvimos com naturalidade, porventura sem estranheza, miúdos dizer que têm más notas a Matemática "porque não serve para nada" (o que é uma criancice, mas não devia passar sem separo) e, pior do que isso, assistimos (ou muitos assistem) sem indignação à consagração das máquinas de calcular no ensino básico.
Os mesmos que sabem como é difícil aprender a coordenar os movimentos para nadar ou como se estragam muitos joelhos ao aprender-se a arte do equilíbrio em cima de uma bicicleta, acham desnecessário que se perca tempo a aprender a tabuada ou a verificar se uma conta está certa aplicando a prova dos nove. Afinal, não é muito mais simples utilizar uma simples calculadora?
Não, não é. A calculadora facilita a vida, como um computador nos permite fazer inúmeros cálculos que, manualmente, exigiriam dias. Mas a calculadora não é capaz de nos dizer se introduzimos correctamente os dados. Pior: a calculadora, sobretudo se utilizada pelos mais novos, impede--os de desenvolver competências que servem não apenas para realizar operações aritméticas simples, mas também para treinar o seu cálculo mental e ter uma ideia mais precisa da ordem de grandeza relativa dos grandes números.

Aqui há uns anos, num debate que teve lugar na Livraria Almedina em Lisboa, o professor Alexandre Castro Caldas, professor de Neurologia, recordou aos desmemoriados (o termo é apropriado) que o cálculo mental, tal como a memorização, tanto de como se escreve uma palavra ou de como se trauteia a tabuada, permite o desenvolvimento de partes do cérebro que, sem esse treino, ficam atrofiadas. Como essas regiões do cérebro são necessárias para outras actividades, evitar a "chatice" da tabuada, as regras da soma de parcelas ou a utilização correcta de números decimais inferiores à unidade tem inúmeras consequências perversas. A primeira, imediata, é tornar-nos numericamente iletrados, incapazes de relacionar números uns com os outros, compreender o significado de uma percentagem e, por isso, não perceber o sentido e o impacto de uma taxa de juro. A segunda, menos imediata, é tornar-nos menos aptos a raciocinar. Da mesma forma que, se deixarmos de utilizar este ou aquele músculos, andaremos mancos ou curvados, deixar de utilizar partes do cérebro diminui as nossas capacidades gerais.
Claro que dizer isto não implica atirar com as máquinas de calcular borda fora. Elas são e serão sempre muito úteis, sobretudo em graus de ensino mais adiantados do que as primeiras fases do básico, onde agora se advoga a sua reintrodução. Só que só utilizaremos bem esses instrumentos se soubermos introduzir correctamente os algarismos, se olharmos para o resultado final e percebermos, mesmo sem sabermos se está correcto até às milésimas, se faz sentido. Não vale a pena perder tempo, por exemplo, a fazer contas com muitas casas decimais onde, por exemplo, tenhamos de utilizar senos e co-senos. Mas de nada nos serve a máquina de calcular se não soubermos o que é um seno ou um co-seno, algo que se terá mais dificuldade em entender se, logo nos primeiros anos, não continuarmos a exercitar o cálculo mental e a saber resolver uma operação tão simples como dividir quatro por sete. Ou respondermos sem hesitar que 75 por cento é mais do que dois terços e menos do que quatro quintos.
Alguns dirão: mas quem é que não sabe isso num país onde concluir o 9.º ano é obrigatório? Pois, para não me estender nos exemplos, boa parte dos finalistas de muitos cursos universitários.
Contudo, a ideia de recomendar a utilização da calculadora nos primeiros anos do ensino básico está de regresso. Não se sabe bem em nome de quê, pois já devíamos ter aprendido que treinar a memorização e saber a tabuada não é torturar as criancinhas: é até menos complexo do que ensiná-las a nadar ou a andar de bicicleta...


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