Um Papa sem sombras nem contradições
Pedro Vaz Patto
2005.05.01
Poucos dias depois do falecimento de João Paulo II, um título de um jornal espanhol dizia que este recebera «os elogios mais universais da História». Pessoas de todos os quadrantes políticos (árabes e israelitas, George W. Bush e Fidel Castro) e de todas as religiões, crentes e não crentes, reconheceram a sua incomparável estatura moral e a relevância histórica da sua acção. Uma multidão esperou mais de dez horas para lhe prestar uma última homenagem, num comovente gesto de gratidão. Muitos reclamaram a sua imediata canonização («Santo, Subito»).
Sendo assim, pode pensar-se desnecessário dar alguma resposta às críticas que, mesmo assim, lhe são dirigidas, pois estas pouca sombra farão diante de tão extraordinárias manifestações de apreço. Senti, em todo o caso, como um dever dar um pequeno contributo para lhe fazer justiça, tentando responder a algumas dessas críticas.
Impressionou-me, desde logo, ler que o seu pontificado seria marcado por sinais contraditórios. Ora, o que me parece mais do que evidente é precisamente a coerência e autenticidade daquilo que sempre disse e fez.
Coerência entre a palavra e o exemplo, antes de mais. João Paulo II proclamou com vigor que «não há paz e justiça sem perdão» e efectivamente perdoou a quem tentara assassiná-lo. Sempre exaltou o valor da vida até ao seu termo natural e o seu testemunho de perseverança no final da sua vida (a sua mais eloquente encíclica, como disseram alguns) demonstrou isso mesmo.
A coerência de João Paulo II não tem por referência o passageiro «espírito do tempo», mas antes o Evangelho, aquele livro colocado sobre o caixão durante o seu funeral. Dele retirou todas as suas exigência e implicações, as “populares” e as “impopulares”, as que superficialmente poderão ser consideradas “progressistas” e “conservadoras”.
A incoerência será, antes, a de quem selecciona ou privilegia algumas dessas exigências e implicações, descurando outras. João Paulo II guiava-se sempre pela mesma consciência da sacralidade da vida humana e pela mesma exigência de tutela dos mais fracos e inocentes. Fazia-o quando condenava as guerras ilegítimas, sobrepondo a tutela dessas vítimas inocentes (que não têm voz) a todas as considerações de ordem política. E fazia-o quando condenava o aborto, pensando também na criança não nascida como a mais inocente e indefesa das criaturas (também ela sem voz). É, por isso, por demais absurdo que tenha sido a sua oposição ao aborto a impedir que lhe fosse atribuído o prémio Nobel da Paz..
Era também a coerência evangélica que o levava a tomar posições tidas por “progressistas” no âmbito da justiça social e tidas por “conservadoras” no âmbito da moral familiar. Respeitar a dignidade da pessoa humana como imagem de Deus é recusar em absoluto a sua instrumentalização, em função do prazer físico ou em função da ambição económica. Incoerente, e também irrealista, será antes pensar que a justiça no âmbito social e político se constrói solidamente quando se difunde uma mentalidade hedonista no âmbito da conduta privada, ou que pode haver coesão na sociedade sem haver coesão na família.
A respeito das questões de ética sexual, foca-se sobretudo o que da sua mensagem são interditos, e esquece-se a sua dimensão positiva (aquilo a que diz “sim”, e não só aquilo a que diz “não”). Nunca nenhum outro Papa (nem qualquer outro pensador) apresentou uma tão rica e profunda visão da beleza e dignidade da sexualidade humana (integrada num desígnio de Deus que faz da mútua doação física e pessoal do homem e da mulher um sinal da comunhão entre as pessoas divinas) como a que decorre da teologia do corpo aprofundada por João Paulo II.
Há quem não compreenda o valor que dava ao celibato sacerdotal. Também aqui se foca o que possa este representar de privação, esquecendo a sua dimensão positiva. Esta dimensão abre as portas a uma paternidade espiritual mais ampla e universal do que a paternidade física. Ele próprio é disso um testemunho eloquente. Quantos milhões de pessoas não viram nele uma pessoa plenamente realizada, antes de mais como pai espiritual? Houve mesmo quem explicasse o fascínio que exercia sobre os jovens precisamente por esta sua dimensão de paternidade, numa época em que os jovens dela cada vez mais sentem falta. Uma dimensão de paternidade que nunca teria alcançado se não tivesse sido radical e completa a sua entrega a Cristo e à Sua Igreja.
A respeito da mulher, foca-se apenas a sua recusa do sacerdócio feminino, muitas vezes com completa ignorância da dimensão teológica que está subjacente a essa recusa, que se liga a uma opção de Jesus que à Sua Igreja não compete “corrigir”. Mas, como reconheceram várias mulheres, nunca nenhum outro Papa (nem qualquer outro pensador) como João Paulo II exaltou, na Mulieris Dignitatem e noutros textos, a insubstituível riqueza daquilo a que chamou o “génio feminino”, e dos frutos que só deste podem advir para a sociedade e para a Igreja. Esta só com esse contributo há-de revelar cada vez mais o seu perfil mariano, a primazia do amor sobre a autoridade. Por isso, aprovou a disposição estatutária que impõe que seja sempre uma mulher a presidir ao Movimento dos Focolares, um movimento laical a que também pertencem sacerdotes e bispos. O pleno reconhecimento do papel específico e insubstituível (não à imagem do papel do homem) da mulher na Igreja há-de, pois, decorrer do acentuar deste perfil mariano da Igreja.
Foi ainda a coerência cristã que levou este Papa à afirmação doutrinal clara e segura da fé católica, mas também à abertura e diálogo, sem precedentes, com cristãos de outras denominações, com fiéis de outras religiões e com pessoas de outras convicções. O diálogo não se confunde com o sincretismo, supõe a definição e autenticidade da identidade de cada um. Mas é precisamente a identidade cristã que exige sempre valorizar o que une e construir pontes. Como afirma o teólogo Piero Coda, a Igreja sabe que a «a Verdade é Jesus e, portanto, não quer e não pode ceder a compromissos, mas sabe também que Jesus inaugurou definitivamente a estrada do diálogo e do amor universal».
Uma outra contradição que por vezes se aponta a João Paulo II diz respeito ao exercício da autoridade disciplinar sobre vários teólogos, que contrastaria com a sua defesa dos direitos humanos no âmbito civil. Não tem sentido, porém, invocar a este propósito os direitos humanos. Não se trata de privar alguém desses direitos, trata-se, antes, de esclarecer e clarificar ideias à luz da Verdade revelada, num indeclinável serviço dos fiéis, que precisam de ser orientados. Esquecem-se, também, situações em que o diálogo permitiu evitar condenações e contribui para correcções de rota. O exemplo de Gustavo Gutierrez, teólogo da libertação (importa dizer que a condenação da Igreja não incidiu sobre a teologia da libertação, mas sobre as cedências ao marxismo de algumas das suas versões, sendo que a experiência histórica veio posteriormente a confirmar cabalmente a ilusão da “libertação” inspirada nos esquemas marxistas), pode ser evocado a este propósito. E também se esquece que da parte dos visados por essas condenações de modo algum se notou aquela sincera humildade e aquele desapego às suas próprias ideias que se notam, por exemplo, nas referências dos escritos de Santa Teresa de Ávila (ela, que veio a ser proclamada Doutora da Igreja) às autoridades eclesiásticas do seu tempo.
Critica-se, ainda, o suposto centralismo do pontificado de João Paulo II, que teria ofuscado a colegialidade, contra a linha do concílio Vaticano II. No entanto, muitos foram os sínodos de bispos realizados durante estes anos. E foi este Papa quem, em vista da unidade dos cristãos, aceitou, na encíclica Ut Unum Sint, rever as modalidades do exercício do seu primado, sem sacrifício do essencial da sua função. Função que, enquanto instrumento de unidade, se mantém sempre necessária, como podemos verificar quando assistimos a cismas nas Igrejas ortodoxas, ou graves riscos de cisma nas Igrejas da comunhão anglicana.
A espiritualidade de comunhão, que João Paulo II, na Novum Millenio Ineunte, traçou como estrada para a Igreja do Terceiro Milénio ( a Igreja deve ser «casa e escola de comunhão»), certamente permitirá reforçar as riquezas da colegialidade sem sacrificar a unidade.
Seria necessária uma enciclopédia para dar a conhecer a multifacetada grandeza do pontificado de João Paulo II. E este não tem as sombras e contradições com que análises superficiais por vezes o caracterizam. Compreeende-se bem que se tenha começado a falar no Papa João Paulo Magno, João Paulo, o Grande.
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