Estado Neutro Ou Neutralizador?

Público, Segunda-feira, 05 de Janeiro de 2004
1. Em França, parece que o Estado se prepara para proibir nas escolas públicas o uso de sinais de pertença a uma religião ou cultura religiosa - por exemplo, o lenço das meninas muçulmanas ou os crucifixos dos cristãos se forem de maior tamanho. O pretexto é o da incompatibilidade destas demonstrações com a laicidade do Estado e da escola pública.
Este caso é muito significativo. O Estado começa por estabelecer um verdadeiro monopólio das escolas públicas por via do exclusivo do financiamento público. Depois, impõe nessas escolas um ensino dito neutro.
Porém, é mais do que discutível a neutralidade de soluções impostas. O Estado define a própria neutralidade. Em seu nome liberaliza umas coisas, como por exemplo o aborto, as drogas e a oferta gratuita de preservativos nas escolas; e também em seu nome procede exactamente ao contrário, proibindo o uso de certas peças de vestuário ou de sinais religiosos.
Sob que pretexto? De agressão? De agressão a quê? À fé dos outros? Ou à descrença dos outros? Será que Jacques Chirac quer defender os não crentes das agressões dos lenços das jovens muçulmanas nas escolas? Não, porque nas ruas, que são um espaço público, essa exibição é possível sem qualquer reclamação de ninguém, crentes ou não crentes sem proibição do Estado. O que o Estado considera como agredida nas escolas públicas não é portanto a opinião de ninguém, mas sim aquela que é a sua própria partidária e que paradoxalmente impõe como neutral. Ou seja, a neutralidade do Estado é uma neutralidade activa, e deste modo o Estado não é neutro; é neutralizador. Proibidor ou liberalizador, conforme convém ao combate partidário que faz às liberdades de convicção e de crença da sociedade civil e aos direitos de os pais escolherem o projecto educativo para os seus filhos, como manda o nº 3 do art. 26º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Enquanto na França se proíbe o uso do lenço na cabeça das meninas muçulmanas que frequentam as escolas públicas, nos Estados Unidos uma proibição dessas dá lugar a um processo de intolerável e inconstitucional discriminação. Esta é a diferença entre a democracia que nasceu e vive na América, e a cópia laicista e autoritária que a França fez e exportou para toda a Europa com os exércitos de Napoleão, e hoje difunde com o jacobinismo de Chirac e outros na União Europeia.
2. ANO NOVO, VIDA NOVA. Em contraste com esta guerra francesa vem a mensagem do Dia da Paz, de João Paulo II, que nos convida a uma educação para a paz sem fronteiras, religiosas ou outras. E em termos bem diferentes. Diz ele: "Escutai todos o apelo humilde do sucessor de Pedro, que clama: hoje, no início de Janeiro do novo ano 2004, a paz continua ainda possível. E, se é possível, então a paz é um dever!".
Sinto que a mensagem deste ano tem qualquer coisa de novo. Como uma nota subliminar de recapitulação conclusiva. Uma grande parte da mensagem é dedicada à recapitulação da tradição de a Igreja celebrar em cada primeiro de Janeiro um Dia Mundial de oração pela Paz. Tradição que, por iniciativa de Paulo VI, teve início em 1968 (ano aliás importante na vida política europeia) e que inclui a proclamação de uma mensagem pontifícia especial.
Com efeito, João Paulo II faz questão de nos recordar este ano todos os temas dos sucessivos 25 Dias Mundiais da Paz e resume: "deste modo nasceu uma síntese doutrinal sobre a paz"; "as várias faces do prisma da paz foram já abundantemente ilustradas, (e) agora falta apenas agir para que o ideal da convivência pacífica, com as suas exigências concretas, penetre na consciência dos indivíduos e dos povos".
Para isso, salienta a necessidade de uma educação para a paz, e recorda-nos uma palavra de ordem que nos dera em 1979: "para alcançar a paz, educar para a paz".
O Papa recusa o fatalismo de se considerar que a paz é um ideal inacessível e afirma com força: "a paz é possível"; "a paz é um dever". Não uma qualquer paz, mas a paz baseada nos quatro pilares indicados por João XXIII na Encíclica Pacem in Terris: a verdade, a justiça, o amor e a liberdade. Nesta base "impõe-se a todos os amantes da paz uma obrigação, que é educar as novas gerações para estes ideais".
Outra ideia que mereceu destaque nesta mensagem é a do respeito pela ordem jurídica. "Neste dever de educar para a paz, insere-se com particular exigência a necessidade de levar os indivíduos e os povos a respeitarem a ordem internacional e a respeitarem os compromissos assumidos pelas autoridades que legitimamente os representam. A paz e o direito internacional estão intimamente ligados entre si: o direito favorece a paz".
Estas proclamações não podem desligar-se das recentes vicissitudes da guerra no Iraque, do terrorismo internacional e da crise das Nações Unidas. O Papa expressamente cita as palavras do Preâmbulo da Carta das Nações Unidas, em que se declara que "o sistema elaborado (...) deveria 'preservar as futuras gerações do flagelo da guerra...'". João Paulo II reconhece que "embora com limites e atrasos (...) a Organização das Nações Unidas contribuiu notavelmente para promover o respeito da dignidade humana, a liberdade dos povos e a exigência de desenvolvimento, preparando o terreno cultural e institucional sobre o qual construir a paz". E propõe "uma reforma que torne a Organização capaz de funcionar eficazmente".
João Paulo II, que se destacou mundialmente pelos esforços a favor da paz e do diálogo inter-religioso, conseguindo os extraordinários encontros de Assis e o histórico texto do Compromisso Comum para a Paz, assinado por dezenas dos mais importantes representantes religiosos mundiais, conclui esta sua última mensagem por estas palavras: "Só uma humanidade onde reine a 'civilização do amor' poderá gozar de uma paz autêntica e duradoura". "Cada um se esforce por apressar esta vitória, no fundo é por ela que anseia o coração de todos".
Ano Novo, vida nova - diz o rifão popular. Quer dizer que a entrada do Ano Novo é momento para um esforço de renovação. Talvez dizer isto não faça sentido para alguns: para os que não acolhem da vida mais do que o seu gozo egoísta, ou apenas vivem a efeméride. Mas, verdadeiramente, este é um juízo temerário e mesmo errado. Como o Papa diz, há sempre um anseio último no coração de todos os homens. Acredito nisso, no desejo humano da felicidade e da paz. Mas um desejo digno é apenas o gérmen de um esforço responsável. Que 2004 seja um ano de vitória para a Paz no Mundo.

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