Todos devem ter prémios?

João Carlos Espada
Expresso 2001.04.21

«No lugar antes ocupado pelo mérito ou merecimento do desempenho individual, independentemente do berço, instalou-se hoje a igualdade de resultados. Em vez de mais oportunidades leais para todos, instalou-se o dogma dos prémios para todos - se possível, prémios iguais para todos. A consequência é óbvia: se todos devem ter prémios, o valor do prémio desaparece. Este igualitarismo foi reforçado por um individualismo sem entrave. Antes, a liberdade do indivíduo era entendida como condição da busca do bem e da verdade.» 

NA EDIÇÃO da semana passada, a revista britânica «The Economist» dedicou a crónica norte-americana Lexington ao nosso amigo Harvey C. Mansfield, professor em Harvard desde 1962 e membro do Conselho Editorial da revista luso-brasileira «Nova Cidadania». O facto é interessante a mais do que um título.
Em Harvard, Mansfield é conhecido pela alcunha de «Harvey C-minus Mansfield» - uma referência ao seu rigor na avaliação dos alunos, em época de inflação das notas. Numa escala crescente de D a A, metade dos estudantes obtém notas iguais ou superiores a «A menos», e apenas 6% obtêm notas iguais ou inferiores a «C mais».
Mansfield cansou-se de contrariar esta tendência inflacionista e, temendo estar a prejudicar os alunos, anunciou que passará a dar duas notas: uma, irónica, acompanhará a inflação e irá para os registos oficiais; outra, realista e exigente, será privadamente comunicada ao aluno para que este possa usufruir de uma avaliação séria - sem, no entanto, ficar prejudicado por comparação com os outros.
A decisão de Mansfield provocou os habituais protestos dos círculos politicamente correctos. «The Economist» veio apoiar Mansfield e condenar as (pós-)modernas teorias educativas que, em nome do culto da chamada auto-estima, estão a transformar o sistema educativo numa monumental operação de terapia. Em vez de ensinar, estas teorias visam que os alunos «se sintam bem» («feeling good»). O resultado é a dramática quebra de padrões, que começa a ameaçar mesmo as melhores universidades.
A resistência de Harvey C. Mansfield ao abaixamento de padrões não é facto isolado ou puramente idiossincrático. Tal como outros grandes intelectuais americanos curiosamente citados noutro artigo da mesma edição de «The Economist» - Leon Kass, de Chicago, Bill Galston, de Maryland, e o jovem Adam Wolfson, da revista «The Public Interest» - Mansfield vem há muito tempo denunciando a deriva de padrões em toda a atmosfera cultural que nos rodeia.
Essa deriva é resultado de uma subtil mas dramática transformação no entendimento dos alicerces espirituais da tradição liberal democrática. No lugar antes ocupado pelo mérito ou merecimento do desempenho individual, independentemente do berço, instalou-se hoje a igualdade de resultados. Em vez de mais oportunidades leais para todos, instalou-se o dogma dos prémios para todos - se possível, prémios iguais para todos. A consequência é óbvia: se todos devem ter prémios, o valor do prémio desaparece.
Este igualitarismo foi reforçado por um individualismo sem entrave. Antes, a liberdade do indivíduo era entendida como condição da busca do bem e da verdade. Estava, por isso, indissociavelmente ligada à existência de erro, e de responsabilidade perante o erro. Mas as teorias pós-modernas decretaram o fim das ideias de bem, de verdade e de erro. A liberdade passou a ser entendida apenas como condição da «auto-expressão» das inclinações de cada indivíduo - todas elas legítimas, desde que sejam «autênticas».
Há mais de 200 anos, Edmund Burke (um dos autores em que Harvey C. Mansfield é uma autoridade) tinha previsto o resultado destas ideias: a generalização da grosseria e o fim da «gentlemanship». Alexis de Tocqueville - cuja «Democracia na América» acaba de ser novamente traduzida para inglês, precisamente por Harvey C. Mansfield, sob o aplauso unânime da crítica - observou exactamente o mesmo. Mas acrescentou uma nota optimista que certamente não passou despercebida a Mansfield:
«A alma tem necessidades que precisam de ser satisfeitas, e, por muito que tentemos distraí-la de si mesma, ela depressa acaba por se aborrecer, inquietando-se e agitando-se no meio dos prazeres dos sentidos (...). Tudo o que eleva, enobrece e expande a alma torna-a mais capaz de triunfar até nos empreendimentos que nada têm a ver com ela».
jcespada@netcabo.pt

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