Qual é o mal ?

António Pinto Leite

Expresso, 2000-11-11

A JUVENTUDE dos anos 60 e 70 fazia uma pergunta ao sistema de valores que então imperava: «Porque não?» A juventude de hoje faz uma outra pergunta: «Qual é o mal?»
Há diferenças decisivas nestas duas perguntas, e as diferenças resumem os últimos 30 anos.
A pergunta «Porque não?» era alternativa e implicava a existência, do outro lado, de um conjunto definido de valores. Dizia-se «não» a um conjunto de valores que não satisfazia mas que claramente se identificava.
A juventude dos anos 60 e 70 confrontou-se com gerações mais velhas de fortes convicções, com uma noção transparente do que estava bem e do que estava mal.
Confrontou-se ainda com noções de autoridade muito nítidas, por vezes exageradas ou perversas; mas, em qualquer caso, associado às convicções fortes das gerações que dominavam, sempre foi simples perceber que existia um sistema de autoridade em que aquelas convicções se fundavam e que as protegia.
Os tempos de agora são bem diferentes.
A pergunta corrente «Qual é o mal?» não é alternativa, nem se confronta com um edifício de valores seguro de si mesmo, nem polemiza com qualquer autoridade.
Muitos filhos perguntam aos pais «Qual é o mal?», e os pais não sabem o que responder, não sabem sequer o que pensar, respondem sem crença, respondem, muitas das vezes, com a própria pergunta.
Nos anos 60, havia a inquietação de preservar ou criar referências; hoje parece existir uma preocupação de aniquilar referências, como se as opções individuais ficassem mais facilitadas por essa via.
Nos anos 60, havia convicções fortes nos dois pólos da tensão cultural da época: os pais eram consistentes na sua ideia do mundo, e os filhos rebeldes eram determinados na defesa da sua visão alternativa; nos anos 90, nem os pais têm convicções firmes sobre a vida e a sociedade nem os filhos acreditam em algo de particularmente intenso ou significativo.
Então, havia dois pólos determinados, que sabiam, contraditoriamente, o que queriam; hoje, há dois pólos hesitantes e irresolutos que procuram, consensualmente, gerir o quotidiano.
Nos anos 60, os pais transmitiam valores; hoje dão opiniões. Os jovens tinham, no primeiro caso, o duplo privilégio de receber valores e de os poder contestar; hoje, os jovens têm a dupla fragilidade de não receber uma orientação clara de vida e de terem nos pais mais uns bons companheiros do que pais assumindo a verdadeira dimensão da paternidade.
Nos anos 60, havia talvez um excesso de ideais e uma menor concentração em objectivos; hoje, há um défice de ideais e uma abundância de objectivos.
Pais e filhos pactuam em torno desses objectivos: os pais têm esgotantes objectivos de sucesso profissional e de bem-estar material, os filhos têm o objectivo de apressar a sua ascensão aos esgotantes objectivos dos pais.
Nos anos 60, os pais de hoje eram os filhos de um moralismo autoritário, por isso se revoltaram; a geração de 90 são os filhos do poder de compra, e talvez daí a dificuldade em encontrar um sentido mais profundo, mais humanizante, até, para a vida.
A crise de valores e de referências, de sonhos e de ideais que, um pouco por toda a parte, se vai notando ser consciência de um número cada vez maior de pais e de jovens é um desafio enorme.
Um desafio positivo e que deve ser vivido pela positiva e em que a grande responsabilidade cabe aos pais. O ambiente é adverso, mas não se pode desistir e, sobretudo, não se pode perder a consciência do problema.
Uma juventude criada sem ideais, sem referências fortes e sem confronto é um activo social vulnerável.
Há um mundo de valores para recompor, desta feita em liberdade. Não é um regresso ao passado, é um passo no futuro.
Uma das perguntas que um pai responsável não deve achar normal que um filho, normalmente, lhe faça é, precisamente, onde está o mal.

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