A CHEGADA DA MORTE
Maria José Nogueira Pinto | DN 2007.11.11
Com o fim das grandes escatologias, das perspectivas colectivas de um final feliz, religiosas ou científicas, como foi o caso do marxismo, os seres humanos viraram-se para um individualismo feroz, projectos próprios de felicidade e de futuro, despidos de transcendência, valores ou referências. Numa cultura caracterizada pelo valor máximo do sucesso pessoal, da beleza e da perfeição, o sofrimento e a morte, a percepção do outro e a referência da dignidade humana foram-se perdendo.
Dizia-se que começávamos a morrer no dia em que nascíamos. Hoje, esta afirmação parece uma indelicadeza desnecessária. O mito dos recursos inesgotáveis da ciência e da tecnologia criou a convicção de ser possível eliminar todo o sofrimento e adiar indefinidamente a morte. Estas expectativas esbarram inevitavelmente com aquilo que é e será sempre a condição humana: uma condição forte e fraca, gloriosa e pungente, perfeita e imperfeita, criadora e refém, presa das vicissitudes da felicidade e do sofrimento. Mas finita, em qualquer circunstância.
O fim da vida, o tempo que precede uma morte anunciada, o último trecho do caminho, é um tempo de enorme perplexidade, em que tudo à nossa roda é posto bruscamente em causa. O sofrimento daquele doente terminal, criança, jovem, adulto, idoso, que devíamos partilhar numa total intimidade com ele, torna-se insustentável para nós. Compaixão? Não. Medo, incapacidade, cobardia. A compaixão só se sobrepõe quando procedemos ao exercício dificilíssimo de nos vermos no outro e, assim, fazer com ele, e como ele, essa derradeira caminhada.
Foi por tudo isto que nasceram os cuidados paliativos. Cuidados de Saúde que não se destinam a curar mas a retirar todo o sofrimento e incomodidade aos doentes terminais. Cuidados familiares, porque os que acompanham o doente também precisam de orientação, apoio para um luto que se vai fazendo. Cuidados indispensáveis a um novo conceito de morrer em casa, em vez de morrer só e perdido num hospital. São também o tributo do "estado da arte" ao respeito pela dignidade da vida humana, ainda na sua fase final, mesmo quando, de modo simplista e egoísta, alguns sugerem que já não vale a pena fazer mais nada.
Em saúde, qualquer direito que se crie é, por definição, universal. Esses direitos vão-se criando sempre que as necessidades encontram resposta na ciência. Se a resposta existe, quem dela necessita adquire o direito aos cuidados correspondentes. Sabemos que não é fácil conjugar o aumento das necessidades e a escassez de recursos pelo que se espera que os decisores saibam estabelecer as prioridades. Em Portugal, milhares de doentes e famílias que precisam de cuidados paliativos, que têm direito a aceder a esses cuidados, não obtêm resposta. Corremos o risco da chamada "morte a duas velocidades". Onde exista uma cultura paliativa que difunda um saber-fazer e um saber-ser haverá condições para um fim de vida digno e sereno. Onde tal não aconteça (e são muitos os casos...) estamos a substituir a possibilidade concreta de aliviar o sofrimento e dar serenidade, por um desesperado e solitário pedido de morte. A desigualdade de acesso aos cuidados paliativos é, por isso, inadmissível.
O desafio é enorme. Quer pelos meios que envolve quer pelas decisões políticas a que obriga. É mais um exemplo do chamado dilema da escolha, tão frequente em Saúde. O desafio é que em Portugal, país da UE, neste século XXI, não exista, em breve, um único lugar onde se possa reclamar a morte, porque não se suporta mais sofrer. Um desafio colectivo e eminentemente civilizacional.
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