Critica da razão cómoda
Público, 20061106
Mário Pinto
1. Todos os autores estão de acordo em reconhecer que se deu, no Ocidente, desde as últimas décadas do século XX, uma mudança nas mentalidades e na cultura. Mentalidades quer aqui dizer costumes de pensar e agir relativamente interiorizados e partilhados; modos de ver, de pensar, de viver, de aspirar. Cultura quer aqui dizer pensamento teórico das ciências, da filosofia e das artes, da educação e da informação; pensamento dominante ou hegemónico.
2.As origens ou causas destas enormes mudanças são muito controvertidas, embora seja fácil listar múltiplos contributos ou influências. Desde as revoluções da economia, das novas tecnologias da informação e da comunicação (factores materiais), até às contribuições do pensamento teórico de vários quadrantes, designadamente a partir dos primeiros "mestres da suspeita" até aos mais recentes criticismos negativistas (factores intelectuais). Diz-se: uma nova era se abriu, a pós-modernidade ou sociedade pós-moderna, visto que a "fé racional", ou "fé" na razão, pilar absolutamente fundamental da modernidade, foi deitada abaixo.
3.Alguns preferem dizer que a pós-modernidade não é uma ruptura com a modernidade, mas uma continuação ainda dentro das suas virtualidades. Porém sem conseguir convencer. Há separações nítidas entre a modernidade e a pós-modernidade. A primeira era afirmativa de grandes princípios e valores, de validade universal, racionalmente encontrados e fundamentados. Ora, o que caracteriza a pós-modernidade é precisamente a crise da afirmação de grandes princípios e valores, ou a crise de sentido, como foi enunciado na concepção e apresentação do recente Congresso da Gulbenkian sob o tema: Que valores para este tempo? Uma crise da razão: a razão consegue negar, mas não consegue reafirmar; desconstrói e não reconstitui; critica, mas não acredita.
4. Não se pense que só os quadrantes da cultura de inspiração greco-judeo-cristã, no Ocidente, estão preocupados. Não falta quem (pensadores laicos, p. ex. de inclinação marxista) veja nesta revolução de mentalidade e de cultura uma correspondência à fase de evolução do sistema capitalista; e uma astúcia do próprio capitalismo, que, pela negação dos valores universais do iluminismo, destrói conceitos indispensáveis à utopia, à luta pelo progresso e pela justiça; e que, pela inculturação do relativismo e do subjectivismo, destrói a capacidade dos indivíduos para um desígnio colectivo.
5. Neste contexto de redução da vitalidade espiritual da própria civilização ocidental, a sociedade civil e o Estado tornam-se mais fracos; e, relativamente, tornam-se mais fortes os grupos de interesses e os movimentos ideológicos que vão no sentido do comodismo. Que também o Estado é mais fraco na sociedade pós-moderna, isso é muito fácil de entender, porque desmaia a ideia de Estado simbioticamente unido à sociedade nacional (Estado-nação). Em lugar desta, surge uma sociedade física e culturalmente arquipelágica, cuja caracterização se aferra dificilmente mas se denuncia quando se fala de multiculturalismo, de relativismo, de subjectivismo; e se analisa nos múltiplos e cada vez mais poderosos grupos e movimentos organizados, transversais ou internacionais, e na crescente importância e poder de instâncias internacionais e supra-estaduais, seja na globalização seja na criação de espaços supranacionais.
6. Paradoxalmente, é aparente um maior protagonismo estatista, mas precisamente nos aspectos correspondentes aos vectores de pressão dos grupos e movimentos comodistas. É de facto aqui que se encontram os afanados esforços da ordem do dia na legislação fracturante (não só em Portugal, mas antes num concerto internacional, e isso é sintomático): sobre a liberalização do aborto, o casamento dos homossexuais, em geral a liberalização sexual e contraceptiva sob pretexto da saúde, etc. Protagonismo que, afinal, releva do próprio enfraquecimento do Estado, que fica à mercê das forças que o dominam.
7. Estas fracturas, porque não são racionais, mas comodistas, usam os argumentos da comodidade e da retórica e fogem às discussões verdadeiramente filosóficas e científicas. Repare-se, por exemplo, que os defensores do aborto voluntário livre não usam os argumentos da ciência e da filosofia; mas apenas os da comodidade e da demagogia. Aí reside a sua força e a sua fraqueza.
8. Sendo inegável este panorama relativamente generalizado em todo o espaço laico do Ocidente (de facto, as religiões não participam deste "espírito do tempo", e daí que sejam o alvo preferencial de toda a agressividade), os grupos activistas tiram vantagem da ocupação dos dois mais poderosos lugares de poder do espaço laico: o Estado (com as suas várias instâncias, entre elas as redes de escolas públicas) e a comunicação social. Se a pressão dos lobbies comodistas sobre o Estado é enorme, a ocupação dos meios de comunicação social não é menos importante. Há dias (e cito de um despacho de uma agência internacional), o Daily Mail reportou que muitos dos executivos seniores da BBC (e vários nomes foram identificados) se sentem muito frustrados pelos comprometimentos da corporação com "o pensamento politicamente correcto" e as políticas radicais, à custa da integridade jornalística e da objectividade. A BBC está dominada por homossexuais e ocupada em desproporcionado número por minorias étnicas, com reflexo, por exemplo, no maior cuidado em não ofender a comunidade muçulmana do que os cristãos.
9. É verdade que desde a antiga filosofia grega se conhece a crítica relativista e até niilista. Porém, o que está na génese do pós-modernismo diluviano não é uma filosofia, mas uma comodidade. Ao contrário da modernidade, a pós-modernidade não vem do espírito do tempo; vem da comodidade do tempo. As condições materiais de viver, hoje, generalizaram um comodismo que domesticou a razão e detesta os valores e as virtudes. Pode por isso falar-se de uma comodização da razão. Urgentemente, tem de acrescentar-se a crítica da "razão cómoda" à crítica da razão pura e à da razão prática.
Professor universitário
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